Falando de escravatura. Um ponto prévio

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Marcelo visitou um entreposto do tráfico transatlântico de escravos especialmente activo no século XVIII, evocou as medidas abolicionistas que o marquês de Pombal tomou na época para abolir "a escravatura" numa parte do território português e foi confrontado, nos jornais e redes sociais, com o regime de trabalho nas colónias africanas no século XX, tempos em que "a escravatura" legalmente já não existia.

Estão admirados? A palavra "escravatura" é uma palavra confusa e, mais do que isso, é propositadamente confusa. A confusão não foi criada pelos que agora a utilizam e se limitam a reproduzir um mau uso herdado, mas pelos que, no século XIX, começaram a usá-la com duplo ou triplo significado. Os brasileiros mantêm um uso correcto das palavras. Para eles, a compra e venda de escravos diz-se "tráfico de escravos"; domínio absoluto de uma pessoa sobre outra e respectiva descendência, que ficam sendo sua posse, diz-se "escravidão"; e "escravatura" é apenas outra forma de dizer "escravaria", uma grande quantidade de escravos. Nós abandonámos e esquecemos a terminologia correcta e usamos "escravatura" com vários significados - mais usualmente sinónimo de "escravidão" -, numa misturada que vem, pelo menos, da década de 1830 e do tempo em que Portugal esteve fortemente pressionado por Inglaterra para suprimir o tráfico negreiro que se fazia por via marítima. A pressão chegou a tal ponto que, em 1839, os ingleses aprovaram e aplicaram o Palmerston"s Act, lei que dava aos navios da Royal Navy poderes para apresar navios com bandeira portuguesa que transportassem escravos ou estivessem equipados para o fazer. A medida teve o mesmo impacto nos brios nacionais que o Ultimato viria a ter meio século mais tarde.

Foi devido à forte pressão inglesa que Portugal teve de desenvolver a tese (falaciosa) de que fora o primeiro a abolir a "escravatura" (estando, claro, a referir-se apenas a tráfico de escravos e numa parcela do seu território, não à escravidão, que só aboliria de forma gradual entre 1854 e 1875). É certo que a linguagem oficial e jurídica se manteve rigorosa, como poderá verificar quem ler decretos e leis então aprovados. Mas em linguagem corrente, no fogo dos periódicos, no calor do debate parlamentar, as coisas começam a misturar-se e a palavra "escravatura" passou a significar "tráfico", "escravidão", tudo isso em conjunto, ou, depois, e por razões inversas, formas de "trabalho forçado" - de europeus, asiáticos ou africanos. Perdeu rigor e é assim, sem conteúdo preciso, que é usada por todos nós. Eu próprio a uso coloquialmente de uma forma englobante porque sei que é essa a prática portuguesa e se em vez de "escravatura" usasse "estado de escravidão", não seria bem entendido. Aliás, já tinha chamado a atenção para este empadão terminológico num dos meus livros, Portugal e a Escravatura dos Africanos, ICS, 2004.

Em suma, a palavra escravatura é uma torre de Babel. Mas se tivermos isso em mente, se percebermos, pelo contexto, o que querem dizer-nos, talvez se evite que quando alguém se reporta ao tráfico transatlântico de escravos e fala de situações vividas no séc. XVIII ou antes, lhe atirem com a "escravatura" no tempo de Salazar. De outro modo é uma conversa de surdos.

Historiador e romancista

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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