Eutanásia: razões para um referendo
A realização de um referendo sobre o projeto de lei de despenalização da eutanásia é necessária para os portugueses se pronunciarem sobre a possibilidade de se verificar entre nós um retrocesso civilizacional muito grave.
Importa rejeitar uma visão binária e maniqueísta dos que querem apresentar a eutanásia como a única solução boa para evitar o grande sofrimento e conseguir uma morte que dizem digna, respeitando as suas opiniões mas rejeitando as críticas que fazem em relação a outras alternativas que não podem ser esclarecidas usando a velha tática da amálgama para desqualificar realidades diferentes.
A Lei 52/2012 de Bases dos Cuidados Paliativos e a Lei 31/2018 sobre os Direitos das Pessoas em contexto de doença avançada e em fim de vida permitem a recusa de tratamentos por vontade livre do doente mesmo que seja conhecido o risco de morrer mais cedo, bem como a sua suspensão. É proscrita a distanásia ou obstinação terapêutica que é o recurso a tratamentos inúteis ou ineficazes para o doente. Foi criada na Lei uma Rede Nacional de Cuidados Paliativos que inclui tudo o que possa dar apoio ao doente e eliminar o sofrimento, controlando qualquer dor insuportável, até à sedação progressiva ainda que por virtude do duplo efeito dela possa resultar a sua morte. A Lei prevê ainda uma sedação permanente para os casos de prognóstico vital breve. Este ponto parece inspirado na lei francesa de 2016 aprovada por uma maioria socialista no mandato do Presidente Hollande que introduziu a sedação profunda e continua que "provoca uma alteração da consciência mantida até à morte quando o doente está atingido por afeção grave, incurável, com prognóstico de vida comprometido a curto prazo tendo um sofrimento refratário aos tratamentos". Pode ser mantida no domicílio do doente.
Se estes direitos forem reconhecidos cai pela base o principal argumento a favor da eutanásia. O problema é que estes direitos são muito pouco concretizados na prática. Se o fossem estaria assegurado um fim de vida digno, sobretudo se houvesse apoio psicológico ao longo do processo. A pessoa mantém a sua dignidade em qualquer circunstância, pois é inerente à sua condição de pessoa A morte digna é um conceito sem sentido usado pelos que não se preocupam em garantir a dignidade da vida até ao último instante. O que não fizeram e é urgente fazer é garantir o acompanhamento e as condições que evitem situações que conduzam as pessoas por causa da dor a pedir a eutanásia. Quem tem responsabilidade na situação atual não tem autoridade para votar a favor da eutanásia sem uma consulta à população. Se o Estado o fizer é claramente imoral.
Na campanha do referendo as pessoas poderiam conhecer melhor as consequências da imposição da solução maximalista e radical que se quer instalar.
Outro dos fundamentos do projeto de lei que deve ser submetido a referendo é o princípio da autonomia da vontade individual. Ora, se esta autonomia não tiver limites o indivíduo julga-se um pequeno "deus" soberano que goza de liberdade sem fim, mas reivindica serviços aos outros e ao Estado.
A defesa de tal princípio é um retrocesso, de mais de um século, ao tempo do individualismo e viola a nossa Constituição. Esta começou em 1976 por ser bastante coletivista, mas desde logo consagrou no artigo 1º. a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República, definindo os seus direitos, liberdades e garantias. Com as revisões de 1982 e 1989 foi reafirmado o personalismo como matriz da Constituição.
Entre todas as pessoas existem laços indestrutíveis de natureza ontológica e ética que decorrem da unidade de origem e comunidade de destino da espécie humana, os quais devem ser lembrados sobretudo quando surgem movimentos demagógicos e populistas que querem novas ou velhas discriminações.
O dever do Estado de Direito de proteger sempre a vida humana sobrepõe-se às vontades individuais, pois é um Estado de legitimidade e de justiça que tem de respeitar os direitos naturais da pessoa, incluindo os que ela própria não pode alienar. Tem de estar "ao serviço da pessoa em comunidade, não do indivíduo desencarnado e arvorado em valor absoluto, mas do ser que a si próprio se vai dando no viver em relação com os outros "como afirmou Francisco Sá Carneiro.
Esta doutrina tem sido consagrada em sucessivos documentos de entidades nacionais e internacionais a quem cabe definir os princípios da ética ao rejeitarem a eutanásia: o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, os órgãos próprios da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Enfermeiros, a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, o Comité de Direitos Humanos da ONU, a Associação Médica Mundial, entre outros, sem esquecer a quase totalidade das grandes confissões religiosas mundiais.
É de uma arrogância sem limites que uma parte de uma pretensa elite nacional, autoproclamada dona da ética, a queira mudar só pelos seus votos, sem ouvir a população. Será que ainda pensa como alguns em tempos já passados que "a ética republicana é o que está na lei".? Como é ela que faz as leis...
Os grandes dirigentes europeus desde a segunda guerra mundial, a começar pelos fundadores das Comunidades Europeias, não só colocaram em primeiro lugar os direitos inalienáveis da pessoa como afirmaram e respeitaram os limites da ação política, fossem eles membros das democracias-cristãs, hoje PPE, ou de outras famílias políticas. Entre eles destaco Helmut Schmidt, presidente do Partido Social Democrata e Chanceler alemão, que no exercício do seu cargo afirmou e praticou a especificidade do "não-deliberável", conjunto de coisas que não podem ser objeto de votações nem de qualquer assentimento maioritário." São os valores que formam a base da nossa vida coletiva humana" e o seu fundamento moral. São os direitos humanos e fundamentais. E acrescenta que o pseudodireito de uma maioria poder decidir de tudo violando os limites do não-deliberável conduz a prazo ao totalitarismo do Estado (seu livro:" O cristão perante as escolhas políticas", original alemão e tradução francesa, 1976)
Portugal sofre agora de um estatismo crescente que estiola as iniciativas e diminui as responsabilidades das cidadãs e dos cidadãos. O referendo vai servir para elas e eles dizerem se querem correr o risco de entrar no caminho que conduz a um Estado todo-poderoso que, mesmo disfarçado, tarde ou cedo acabaria totalitário.
Portugal é membro de duas comunidades em que os seus membros estabeleceram especiais laços de solidariedade, a União Europeia e a CPLP, com cerca de 500 milhões e de 270 milhões de habitantes, respetivamente. A quase totalidade desses membros não permite a eutanásia, salvo Holanda, Bélgica e Luxemburgo, que são cerca de 26 milhões. Isto mostra bem como são absurdas as proclamações dos que consideram um "progresso" a legalização que pretendem. Os portugueses devem saber que nos dois primeiros países referidos houve sucessivos casos de pessoas que foram eutanasiadas sem se provar que fosse essa a sua vontade. Estes casos são verdadeiros homicídios que violam o Protocolo Adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem que proíbe que os Estados matem seja qual for a circunstância. Apesar das leis o proibirem, tais factos acontecem, tal como aconteceriam em Portugal, o que seria um retrocesso civilizacional de mais de 150 anos até antes da abolição pioneira da pena de morte.
Sabe-se que também houve crianças doentes mortas por vontade dos pais e que na Holanda alguns pretendem legislar para permitir a estes pedirem a eliminação de filhos que nasçam com doenças ou defeitos graves. Em caso de aprovação, isso significaria um retrocesso de mais de dois mil anos até aos tempos da República Romana em que o páter-famílias o podia fazer. A diferença está em que em Roma o direito evoluiu lentamente para melhor enquanto o que alguns parecem querer no dito país é involuir agora para a barbárie.
Dirão alguns que a lei portuguesa proibiria estes casos, mas nada garante o que aconteceria na prática. Portanto, o princípio da responsabilidade exige a aplicação do princípio da precaução, evitando hipóteses de irreversibilidade por mortes ilegítimas decorrentes da introdução da eutanásia.
Pode ser questionado se o referendo deve ser usado para decidir em matéria não-deliberável, entrando no campo da ética e do direito à vida. A resposta é que a sua utilização tem por objetivo usar o poder soberano dos portugueses para evitar as enormidades que poderiam resultar da aprovação do projeto em questão. A rejeição que os seus proponentes, supostos defensores da democracia participativa prevista na Constituição, fazem do referendo mostra que sabem que os eleitores não aprovariam o dito projeto, pois querem salvaguardar os valores fundamentais da comunidade nacional, incluindo a solidariedade de todos com todos.
A seguir ao referendo iriam exigir, com a maior força possível, que o Estado passasse finalmente a aplicar a parte necessária do dinheiro dos seus impostos para concretizar cuidados paliativos e outros meios de evitar o sofrimento, garantindo a todos uma vida com dignidade até ao momento da morte.
Deputado às Assembleias Constituinte (1975-1976) e da República (até 2005), antigo membro da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa e ministro da Cultura do 15.o Governo Constitucional