De deusa da Terra a criadora da harmonia digital: Gaia a fechar a presidência alemã

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Terminou 2020 e terminou também a presidência alemã do Conselho da União Europeia (UE) que, para o Ministro da Economia, Peter Altmaier, conseguiu gerir a crise e focar-se nas tecnologias do futuro, num mandato marcado pela luta contra a pandemia Covid-19.

Para além da gestão dos desafios e impactos nas áreas da saúde e económico-social, decorrentes da pandemia, recorde-se que a proteção climática, a digitalização e o papel da Europa no mundo, bem como as negociações com o Reino Unido na sequência do Brexit - que culminaram no acordo alcançado a 24 de dezembro passado - foram temas prioritários desta presidência.

Focando-nos, porém, na digitalização e ainda que a mesma fosse prioritária antes da pandemia, a verdade é que a pandemia veio acelerá-la em muitas áreas, acentuando a necessidade da transformação digital resultar de um trabalho conjunto da política, economia e sociedade.

De repente, quase de um dia para o outro e sem grande preparação, a escola, o trabalho e o convívio com amigos passou a ser feito através de um computador com acesso à internet. A nova realidade aproximou-nos e ligou-nos à distância graças à tecnologia. Skype, Zoom, Microsoft Teams, Google Meet, apenas para dar alguns exemplos, tornaram-se no último ano recursos essenciais nas nossas vidas. Tudo num tempo acelerado tecnologicamente falando.

Foi, nesta linha, à distância e remotamente, que decorreu a 14ª cimeira digital europeia, nos dias 30 de novembro e 1 de dezembro de 2020, sob o tema: "Digital nachhaltiger leben" ["vida digitalmente mais sustentável"], defendendo o impulsionamento da sustentabilidade e a otimização em energia e recursos dos processos já existentes.

E, mais tarde, a 18 de dezembro, foi alcançado o acordo, com o Parlamento Europeu, sobre o novo programa digital da Europa que pretende aproximar a investigação de tecnologias digitais da sua utilização prática, trazendo resultados da investigação para o mercado.

Segundo Altmaier, este programa é um elemento chave para o desenvolvimento e reforço das capacidades digitais na Europa. Partindo do próximo orçamento europeu de longo prazo, para os sete anos vindouros (ou seja, até 2027), 7,6 mil milhões de euros serão disponibilizados para testagem e implementação das tecnologias digitais, destinando-se tanto à esfera pública como privada, em torno de cinco áreas centrais: computação de alto desempenho (2,2 mil milhões de euros), inteligência artificial (2,1 mil milhões de euros), cibersegurança (1,7 mil milhões de euros), avançada capacitação digital (580 milhões de euros) e amplo uso da tecnologia digital em todos os domínios de negócio e da sociedade como um todo, recorrendo ao apoio de hubs de inovação digital (DIHs) (1,1 mil milhões de euros).

Trata-se, de igual modo, de algo a usar na recuperação económica pós pandemia e, para a Comissão Europeia, de um meio para a resiliência, autonomia estratégica, ao promover a soberania tecnológica, e prosperidade da Europa.

Sob iniciativa alemã, e gerido em conjunto com a França, o projeto Gaia-X, apresentado pela primeira vez em 2019 e cuja associação internacional sem fins lucrativos se encontra estabelecida em Bruxelas desde o verão passado, tornou-se central na concentração de esforços europeus para criar uma infraestrutura estandardizada e interoperável europeia, segura e confiável, de tecnologia e data, e fomentar a soberania digital dos utilizadores europeus de serviços de cloud, apoiada simultaneamente por investimentos públicos e privados.

Dando o nome a este projeto, Gaia é, na mitologia grega, uma deusa da Terra, mãe de todos os deuses e criadora do planeta. Embora nascida do Caos, ordenou o Cosmos, pondo fim à desordem e à destruição ao criar a harmonia. Desordem esta que, no contexto deste projeto, se deverá referir ao mundo digital e à necessidade defendida de o regulamentar e estruturar, criando harmonização de sistemas, tecnologias e normas, ainda para mais no referido contexto de aceleração tecnológica acentuado pela pandemia decorrente.

Voltando a Gaia, a deusa, consta que sozinha criou o Céu, o Mar (fez nascer a água), e as Montanhas, dando origem aos seres vivos. Daí que, seguindo a sua simbologia, possamos acreditar que Gaia enquanto projeto europeu pretende dar origem a uma nova forma de vida, envolvendo a digitalização da sociedade europeia como um todo, o que, por certo, acabará por estar relacionado com a já tão falada rede 5G.

Gaia X conta, do lado alemão, com o apoio da Beckhoff Automation, BMW, Bosch, DE-CIX, Deutsche Telekom, German Edge Cloud, PlusServer, SAP e Siemens. Do lado francês, o projeto é apoiado por Amadeus, Atos, Docaposte, Électricité de France (EDF), Institut Mines-Télécom (IMT), Orange, Outscale, OVHcloud, Safran e Scaleway. Entre os co-fundadores da associação encontram-se: Fraunhofer-Gesellschaft, a International Data Spaces Association (IDSA) e a Cloud Infrastructure Services Providers in Europe (CISPE).

De facto, este projeto, igualmente objeto de trabalho desta terminada presidência alemã, reveste-se de interesse para a economia como um todo - corresponde a um recurso essencial de crescimento económico -, na medida em que permitirá garantir a segurança e manter a soberania sobre a área de data, e tomar decisões que permanecerão inovadoras e competitivas acompanhando a mudança dos tempos, criando emprego e progresso societário no geral.

No futuro, pretende-se com esta infraestrutura conseguir, entre outras coisas, melhorar os cuidados de saúde, criar sistemas de transportes mais seguros e limpos, gerar novos produtos e serviços, reduzir os custos dos serviços públicos, melhorar a sustentabilidade e eficiência energética.

Ademais, e seguindo esta lógica de ideias, convém também referir o facto da presidência alemã ter desenvolvido negociações relativamente ao quadro regulamentar para a governança dos espaços europeus comuns de data (em áreas como a da saúde, por exemplo) e ter contribuído para a estrutura europeia de inteligência artificial com uma proposta a ser submetida à Comissão Europeia nos primeiros quatro meses de 2021.

Finalmente, e no que respeita à pasta da economia em que se encontra inserida a digitalização, a presidência alemã ficou marcada em números por: 1 encontro ministerial na Alemanha, 19 grupos de trabalho ativos; 10 videoconferências dos ministros responsáveis pela competitividade, comércio, energia, telecomunicações/política digital, espaço e turismo; 220 sessões dos grupos de trabalho e comités do Conselho, das quais 68% online e apenas 32% presenciais; 7 presenças a nível político no Parlamento Europeu (antes dos comités); 3 intercâmbios ao nível ministerial com os parceiros presidenciais Portugal e Eslovénia; 82 sessões de diálogo tripartido em atos legislativos a nível técnico e político; e 19 conferências de alto nível.

Doutora em Estudos Estratégicos pela Universidade de Lisboa

Mestre em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade Nova de Lisboa

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