Cura radical de sangue novo e dinheiro fresco

Os grandes, poderosos e ricos de todo o mundo vieram uns dias a Cascais e ao Estoril para uma série de conferências sobre - resumindo a quatro palavras - os benefícios da globalização. Na apresentação, os organizadores da conferência mostram-se entusiasmados com o país anfitrião: que os portugueses estão muito abertos a investimentos estrangeiros e que nem se importam de vender setores estratégicos, como a energia ou as telecomunicações. Não se importam? Vender setores-chave fundamentais já nada tem que ver com "economias abertas", "globalização" ou "liberalismo económico". É de Estado falido, falhado e, enfim, fiquemos por aqui.

A EDP e a PT já eram (os preços mantêm-se altos, mas agora os lucros voam do país para fora). A banca nacional é um sorvedouro de impostos insaciável. Meia dúzia de casos de polícia nos últimos anos deixaram uma fatura de milhares de milhões. E só em juros da dívida pública, das empresas e das famílias, Portugal gasta mais do que com a Saúde, Educação, Justiça e Defesa juntas.

Atirado para arena de debates por vicissitudes várias, acabei por falar num painel sobre "novas correntes filosóficas e a atualização de valores". Tentei explicar o mundo português a uma plateia internacional: é verdade, tudo está à venda, anéis, dedos e a alma.

Tudo vale neste momento para sairmos "da crise", em que caímos após décadas de corrupção sistémica e fluxos de capital fora de controlo.

Mas as pessoas estão a ficar fartas (nesta conclusão ter-me-ei deixado levar mais pelo desejo do que pela análise).

Ao jantar, no salão nobre de um hotel de cinco estrelas, o CEO britânico duma empresa de software ao meu lado pergunta-me: "Este é que é o vosso primeiro-ministro? Não parece europeu." O primeiro-ministro está ao microfone a vender a imagem de Portugal em palavras bem escolhidas. António Costa joga os seus argumentos com a convicção de quem só tem trunfos na mão: venham, comprem, invistam.

Confirmo que António Costa é primeiro-ministro, que tem ascendência goesa, e que Lisboa já era uma cidade global há meio milénio. "And there you go again", diz ele com um sorriso de quem entende. Sim, lá vamos nós outra vez. Só que desta vez não vendemos nem especiarias, nem sedas, nem prata, nem ouro, café ou diamantes. Indústria, pouca sobrou; agricultura, de rastos, e a "frota pesqueira" dá para abastecer os mercados locais, o atum compramos a japoneses e as douradas a espanhóis. A solução de último recurso passou a ser vendermos o que resta no fundo do baú: casas em ruínas, palacetes decadentes, quintas, parques e o resto do jardim à beira-mar. Uma coisa é certa, os novos proprietários irão cuidar melhor do património do que quem o vendeu.

Ao fundo do salão nobre, atrás da enorme janela panorâmica uma avenida com palmeiras e o Atlântico a perder de vista. Sem dúvida, este é um país com um clima ameno e vegetação e cenários exóticos para os europeus. E um país seguro, com o charme do velho mundo para africanos, asiáticos e americanos. E a moda pegou mesmo, um T1 nos bairros históricos de Lisboa, com 45 metros quadrados e paredes em pladur, vende-se com a mesma naturalidade por 170 mil euros com que o dono da Fender compra uma casa na Baixa por seis milhões ou Madonna e Phil Collins disputam um palacete de 25 milhões.

Os portugueses são décor neste último ato da crise. Para os estrangeiros que afluem a terras lusas, os habitantes locais, de bigodes ao volante dos táxis e a atender nos restaurantes, são vistos como descendentes de marinheiros encalhados em terra; as mulheres nos bairros são fadistas, os restantes são velhos reformados ou aristocratas falidos, na trajetória duma estética delineada por filmes como a Cidade Branca, de Alain Tanner, ou livros, tipo o Comboio Nocturno para Lisboa de Pascal Mercier. Um pouco Pátio das Cantigas com fidalgos de cordel e um cheirinho a Pessoa - ou a manjerico, se for nos santos populares. Conheço alemães, ingleses, franceses e checos que estão cá há meia dúzia de meses e já me explicam a alma portuguesa. Fazem-me sorrir no seu entusiasmo. Esta é, depois de uma onda brutal de emigração, uma injeção de sangue novo e dinheiro fresco e uma coisa é certa: se não for a cura, é a morte do artista.

*Correspondente Der Freitag e colunista do Portugal Post

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