Burocracia à portuguesa
Viver em Portugal é muitas vezes um exercício de masoquismo. Quando se tem de tratar de um assunto com o Estado, o português, já se sabe que vai sofrer. Olha-se para a cara atrás do guiché e percebe-se que, na maioria dos casos, o funcionário está ali pouco satisfeito por ter de aturar esses seres incomodativos com a mania de formar filas em frente ao seu local de trabalho.
Desde logo, o Estado fala e escreve numa língua que não foi feita para comunicar. A reação de quem abre uma carta das Finanças, de um tribunal ou de uma direção-geral é, após a segunda ou terceira leitura, perguntar: "O que é que estão a querer dizer-me?" É preciso estar no topo da hierarquia para se vencer a linguagem dos burocratas.
Enquanto o Código Civil francês estava a ser escrito, os juristas tinham de ir regularmente ler os novos artigos a Napoleão. Quando Napoleão não entendia o sentido, mandava os juristas reformular os textos e voltar na semana seguinte. O objetivo era que o cidadão percebesse o que o Estado lhe estava a dizer. Na burocracia portuguesa dos regulamentos, dos requerimentos e dos impressos avulso acontece o contrário.
Isto começa com coisas simples. No site do Ministério da Educação, as férias não se chamam férias, são "interrupções das atividades letivas". Por todo o lado, abundam siglas como CCDRLVT, que convidam a desistir antes de se começar a ler. E antes de se entender uma frase como "por razões de segurança não é permitido permanecer entre o bordo do cais e a faixa longitudinal amarela nele existente", já o utente caiu nos carris do metro. A ideia é intimidar e tornar crípticos os conteúdos que só os burocratas dominam. Quando se recebe uma notificação, antes de se entender que é para prestar declarações como testemunha, a primeira impressão com que se fica é que se vai ter de pagar uma multa ou apodrecer nos calabouços, se não se fizer alguma coisa que exige a consulta de um advogado para perceber o que é.
O Estado trata cada cidadão como um potencial criminoso, identificado por um número, civil ou fiscal, a quem são tiradas fotografias e impressões digitais
Desde logo, o Estado começa por tratar cada cidadão como um potencial criminoso, identificado à partida por um número, civil ou fiscal, a quem são tiradas fotografias e impressões digitais. Há não muitos anos, este processo de "fichar" estava reservado a criminosos. Para agravar a situação, as máquinas eletrónicas que recolhem as impressões digitais tendem a funcionar tão bem como o resto do serviço.
A burocracia parte sempre do princípio de que o cidadão está a mentir.
Quando passei há um ano e meio num buraco de uma rua de Lisboa e me rebentou um pneu, pedi à Câmara Municipal para me pagar o prejuízo. Passado um ano, recebi uma carta com 15 páginas e várias assinaturas, rubricas e carimbos de funcionários de vários graus hierárquicos, gabinetes e divisões da CML. Ao longo de 12 meses o meu pneu furado deu trabalho a mais de uma dúzia de funcionários.
Demorei a perceber a carta: concluía a CML que eu não tinha direito a indemnização por múltiplas razões. Entre elas porque na fatura do novo pneu não dizia expressamente qual a posição do pneu substituído, logo faltava a prova de uma "relação causal" entre o buraco e o furo.
A justificação para não pagar o pneu deverá ter custado um camião cheio de pneus em horas de trabalho de juristas, funcionários e tinta para carimbos.
Mas entre as dezenas de histórias traumáticas com a burocracia, também há momentos gratificantes, como quando um funcionário numa Loja do Cidadão achava que eu não podia mudar a minha residência de Portugal para a Alemanha porque o "sistema só funciona a nível nacional". Depois de longa insistência e de conversar também com o seu superior, viraram finalmente o ecrã do computador para mim para eu perceber o problema. Sugeri que tentassem clicar na janela onde dizia Portugal como país de residência. De repente, para grande surpresa, surgiu no computador uma caixa de diálogo com uma longa lista com todos os outros países da UE. Foi uma festa na Loja do Cidadão. "Que engraçado", dizia-me o funcionário. "há cinco anos que mandamos as pessoas embora porque pensávamos que isto só dava para Portugal."