Aos nossos maiores que a consagraram e aos vindouros para que a preservem. Sempre

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Fica abolida a pena de morte." Uma frase. Seis simples palavras que dão início à lei da reforma penal e das prisões que, no ano de 1867, pôs fim à possibilidade de aplicar esta pena aos crimes civis. Um legado que deixámos ao mundo, do qual, enquanto Estado e enquanto povo, nos devemos orgulhar. Sem reservas. Um contributo inestimável para a afirmação de uma nova visão do mundo, assente no reconhecimento da inviolável dignidade do ser humano. Uma aquisição civilizacional que logrou superar as fronteiras do nosso país inspirando, pela ação e pelo exemplo, os movimentos abolicionistas que já se manifestavam na Europa.

Tocado pelo pensamento ímpar e libertador de Cesare Beccaria, o abolicionismo português do século XIX, do qual é justo destacar a atuação política de Augusto César Barjona de Freitas - ministro dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça -, foi o primeiro, digamo-lo sem pudor e com honra, a passar para a ordem jurídica a ideia forte da inadmissibilidade de uma pena ser suscetível de desrespeitar o supremo bem jurídico da vida humana. Por conseguinte, e no ano em que se assinala o centésimo quinquagésimo aniversário da abolição da pena de morte em Portugal, é de inteira justiça destacar este importantíssimo marco da nossa história, reconhecendo a dimensão vanguardista do caminho que foi trilhado e o impacto que teve na nossa vida coletiva, mas também na história dos povos e do pensamento mundial.Naquele tempo - e, infelizmente, digamo-lo, porventura também no nosso tempo - a defesa da abolição da pena de morte não encontrou, seguramente, um elevado grau de atração na vontade popular. Com efeito, não se vislumbra, para dizer o menos, que na sociedade portuguesa da segunda metade do século XIX existisse um clamor comunitário que facilitasse a defesa do fim da mais severa das penas. É, pois, num movimento de dupla rutura - com o statu quo jurídico-político e com o sentir predominante da comunidade - que foi possível alterar de um jeito radical e particularmente sensível relação que se estabelece entre o Estado e o cidadão no ato de punir.

É essa coragem, é essa visão que cumpre enaltecer. Diz-nos a história que a afirmação progressiva da cultura dos direitos humanos passou sempre pela firmeza de vontade de alguns homens e de algumas mulheres - por vezes, assinale-se, muito poucos - face ao posicionamento contrário de tantos. Firmeza de vontade assente na razão e nos valores da justiça e da liberdade. Muitos dos avanços de afirmação desta cultura ocorreram ainda antes do reconhecimento pleno enquanto tal dos próprios direitos humanos. No entanto, os instrumentos jurídicos criados a partir de meados do século XX, dos quais se destaca, como é óbvio, a Declaração Universal dos Direitos do Homem - adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas no dia 10 de dezembro de 1948 -, souberam respeitar e acolher todo o pensamento, todo o conhecimento e todos os avanços alcançados no passado em defesa da tolerância e do respeito pela vida humana.

E foi assim que justamente sobre o sangue, suor e lágrimas dos nossos antepassados erguemos a democracia moderna, não apenas representativa mas também, e sobretudo, participativa, cognitiva e respeitadora dos direitos fundamentais do cidadão.

Todavia, sabemo-lo também, este trabalho não está nem nunca estará concluído. De tempos a tempos surgem sempre umas nuvens escuras que colocam em causa tudo o que se conquistou. Face ao crescimento do sentimento de insegurança, motivado por ataques terroristas nos corações das cidades ou pela exploração do crime mais hediondo - muitas vezes obscena, sejamos claros e diretos -, por parte dos múltiplos meios pelos quais hoje os cidadãos obtêm informação, não raras vezes surge no discurso público o apelo à reintrodução de punições que vão contra os princípios e os valores fundantes de um Estado das liberdades.

Por assim serem as coisas importa estar vigilante. Mais. Importa ser ativo no combate a todo e a qualquer sinal - por mais insignificante que seja - que possa perigar o incalculável avanço civilizacional, humanista, que se concretiza no respeito pelo ser pessoa no ato de punir. As conquistas do passado não desoneram as gerações do presente e as gerações do futuro de defender este nosso património histórico com a mesma firmeza, com a mesma coragem, com a mesma força de carácter e de espírito daqueles que, há 150 anos, conseguiram abolir a pena de morte.

Para esse desafio, para esse combate, o Estado português pode contar com o Provedor de Justiça - a sua Instituição Nacional de Direitos Humanos -, que, ancorado no juramento constitucional que prestou, na lei que o sustenta e na legitimidade democrática que o envolve, tudo fará para que, como nos diz o n.º 2 do artigo 24.º da Constituição da República Portuguesa, "em caso algum haja pena de morte". Sempre.

Provedor de Justiça

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