A insuficiência cardíaca: uma epidemia deste século

A insuficiência cardíaca é um problema grave da Saúde Pública; atinge proporções epidémicas
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Trata-se não apenas de uma doença mas de uma síndrome, ou seja de um conjunto de queixas (sintomas) - que os doentes referem como cansaço e dificuldade respiratória (dispneia) desencadeados subitamente ou por esforços cada vez menores, dificuldade em dormir deitado necessitando várias almofadas, acordar subitamente com falta de ar, aumentar rapidamente de peso por inchaço (edema) dos membros inferiores e do abdómen - e de sinais colhidos pelos clínicos que, isolados ou em conjunto e não sendo específicos da insuficiência cardíaca, levam o médico a suspeitar do diagnóstico. Deverá então ser objetivada a existência de disfunção cardíaca subjacente, nos exames complementares como o eletrocardiograma, o RX do tórax, algumas análises laboratoriais e o ecocardiograma, para confirmação do diagnóstico. Existem múltiplas causas e tipos de disfunção cardíaca capazes de desencadear quadros de insuficiência cardíaca; é frequentemente a derradeira fase da maioria das doenças cardiovasculares.

Por as queixas serem inespecíficas, o diagnóstico é difícil. Os sintomas são frequentemente atribuídos a outras causas como a idade avançada, o excesso de peso, o sedentarismo, ou a outras doenças como a anemia ou a insuficiência renal que, não raramente, coexistem com a insuficiência cardíaca. Estes quadros clínicos, frequentemente subvalorizados por doentes e médicos, são de diagnóstico e início do tratamento tardios, permitindo que a doença evolua, comprometendo a qualidade de vida e a sobrevida dos doentes.

É uma síndrome com elevada morbilidade e mortalidade, identificada como a principal causa de internamento hospitalar após os 65 anos de idade, na Europa e nos Estados Unidos. Os reinternamentos são extremamente frequentes, com inevitáveis consequências socioeconómicas para os cidadãos e para o sistema nacional de saúde.

A mortalidade por insuficiência cardíaca, nas suas fases mais evoluídas, atinge os 50% ao ano. Morrem mais doentes de IC do que de cancro da mama, do cólon ou da próstata individualmente; mais até do que de todas as neoplasias malignas em conjunto. Ainda que mais prevalente, causando pior qualidade de vida e maior mortalidade, a insuficiência cardíaca é bem menos conhecida e temida pelo grande público do que o cancro.

Já afeta mais de 2% da população na Europa e nos Estados Unidos. A sua prevalência e mortalidade continuaram a aumentar nas últimas duas décadas, enquanto a mortalidade global por doença cardiovascular tende a decrescer no Mundo ocidental. Prevê-se que a prevalência da Insuficiência Cardíaca possa vir a crescer em cerca de 30% nos próximos anos, atingindo perto de meio milhão de indivíduos em 2030, caso não alteremos comportamentos e atuações.

Em 1998-2000, o estudo EPICA - EPidemiologia da Insuficiência Cardíaca e Aprendizagem - avaliou, pela primeira vez, a prevalência da Insuficiência Cardíaca em Portugal Continental. Numa amostra da população dos utentes dos Centros de Saúde de todo o País, representativa da população Portuguesa em geral, a prevalência global da Insuficiência Cardíaca em Portugal

Continental foi quantificada em 4,36%. Aumenta com a idade; atinge 1% dos indivíduos até aos 49 anos de idade, 3% na quinta década de vida, 7% na sexta, 13% na sétima e ultrapassa os 16% após os 80 anos.

Destes números se depreende que atualmente mais de 380000 indivíduos adultos sofrem de Insuficiência Cardíaca sintomática em Portugal, comparando com os 260000 existentes no fim do século XX.

Por outro lado, é previsível que existam cerca de outros tantos com disfunção cardíaca ainda assintomática que, sem o reconhecimento precoce e tratamento adequado, evoluirão inexoravelmente para a IC sintomática. Muitos mais ainda haverá, com fatores de risco cardiovascular não controlados, potenciais candidatos a desenvolver a doença. Estima-se que um em cada cinco adultos irá desenvolver um quadro de insuficiência cardíaca ao longo da vida.

Apesar da sua elevada prevalência e incidência, do mau prognóstico, do enorme impacto social e económico, com custos estimados em mais de 2% do total do Orçamento para a Saúde dos Países industrializados, a insuficiência cardíaca é uma doença mal conhecida, pouco prevenida, tardiamente diagnosticada e tratada.

A responsabilidade é de todos e é possível fazer melhor. Existem hoje formas de prevenção e de tratamento que permitem melhorar não só os sintomas e a qualidade de vida dos doentes, como impedir ou atrasar a progressão da doença. Vários são os modelos organizativos, baseados em equipas multidisciplinares envolvendo múltiplas especialidades médicas e enfermagem especializada, cuidados hospitalares e de ambulatório, que já deram provas e são uma mais-valia para o manejo integrado da doença.

Compete às Sociedades Científicas, Faculdades, médicos e outros profissionais de Saúde com responsabilidades compartilhadas nesta área, divulgar a doença e as suas consequências clínicas e socioeconómicas.

É ainda fundamental sensibilizar os decisores da Saúde em Portugal para esta epidemia e para a necessidade de a contemplarem no programa nacional de saúde e na alocação de recursos.

A insuficiência cardíaca foi, por isso, o tema escolhido pela Sociedade Portuguesa de Cardiologia para, neste Dia Mundial do Coração, divulgar e sensibilizar o grande público, também ele com responsabilidades nos cuidados com a Saúde, para as proporções epidémicas do problema, a necessidade de despiste das populações de risco para a prevenção eficaz e o tratamento precoce desta síndrome.

Necessitamos da estreita colaboração de todos, médicos, doentes, familiares e entidades governamentais para juntos debelarmos a epidemia.

Professora Auxiliar convidada da NOVA Medical School, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Nova de Lisboa//Coordenadora do Programa de Manejo Integrado da Insuficiência Cardíaca, H. S. Francisco Xavier, CHLO, Lisboa.

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