A cidade onde as palavras não valem o mesmo

Em dois anos de Los Angeles, descobri que é preciso ter sempre um plano B, C e D para colmatar esta distorção. E que os portugueses que por cá residem são, por regra, das pessoas mais fiáveis que se pode encontrar.

As mensagens, umas atrás das outras, ficaram por responder. Os telefonemas iam parar à caixa de correio de voz. Meia hora depois da hora marcada, percebi que tinha sido vítima de mais um episódio comum em Los Angeles: deixaram-me na mão, falharam o compromisso e nem sequer tentaram explicar o que aconteceu. Tinha ido buscar dois sofás encontrados numa aplicação para quem quer vender mobílias e objetos usados. As pessoas contratadas para os transportar nunca apareceram.

Los Angeles, a cidade dos anjos e o eldorado de quem sonha com Hollywood, é conhecida oficiosamente como flaky town. As promessas, aqui, não são para cumprir. Existe um acordo tácito sobre a volatilidade de um compromisso. Marcar um encontro ou uma reunião, contratar alguém para um serviço ou reservar um lugar num evento não se traduz necessariamente em algo concreto. Amigos convidados para um jantar ou festa de anos podem nem dar-se ao trabalho de avisar que não vão aparecer, e depois ficarão surpreendidos com a pergunta: "Então, não pudeste vir?", como se fosse uma afronta pedir explicações sobre algo que toda a gente faz. Flaky = incerto, inseguro, instável, duvidoso, falível, inconstante. Que não é de confiança. Há atores que começam a gravar filmes e de um dia para o outro descobrem que o realizador desapareceu do mapa, o número de telefone deixa de funcionar e o projeto vai para o buraco negro dos sonhos de Hollywood.

A primeira vez que ouvi falar deste conceito foi em conversa com um produtor de vídeos baseado em LA. "É tão difícil montar uma equipa e conseguir que apareçam todos no dia das filmagens", desabafou. Não podia acreditar que fosse assim tão difícil. Mas isso mesmo me foi repetido um pouco mais tarde durante uma entrevista com uma cantora, que veio para Los Angeles à procura de vencer no mundo da música. Não demorou muito tempo a descobrir esta faceta dos angelenos, de gema ou importados, que torna difícil confiar na palavra de alguém. Fala-se com demasiada facilidade e faz-se com muito menos frequência. Perdi a conta à quantidade de projetos de que me falaram, reuniões que foram agendadas e entrevistas apalavradas que nunca aconteceram. Aquela conversa com o produtor de um novo filme? Não está na agenda, desculpe. Marcou uma visita ao escritório para esta hora? Que estranho, a responsável nem está cá nesta semana.

Há outras formas veladas, e francamente mais simpáticas, de protagonizar um desaparecimento. "O trânsito está terrível!" é uma delas - a hora de ponta em Los Angeles é de manhã, à tarde e à noite. Demora-se sempre muito a chegar a qualquer lado, por isso quando alguém avisa que o trânsito está mau isso traduz-se por: "Não vou, e dá-te por contente por ter pelo menos tentado arranjar uma desculpa."

Também existe uma noção de conforto que padece de hipérboles múltiplas. Se chove, não dá para sair porque há poças de água no chão. Se é preciso andar um bocado, cancela-se porque "ninguém anda em LA".

Telefono à hora marcada e o responsável não está. "Ligue na quarta", ouço dizer do outro lado, perscrutando um tom indolente no mascar de pastilha elástica. Os e-mails ficam sem resposta. A entrevista foi cancelada por desaparecimento do entrevistado. Fantasio com raptos extraterrestres, sabendo que é apenas o fenómeno incontornável da flaky town".

Com o tempo, apercebi-me de que a maior razão de todas para esta cultura de "eu digo que sim mas na verdade não penso em fazer isso" é que todos estão sempre à procura de algo melhor. Uma festa mais badalada, um amigo com melhores ligações, um trabalho mais influente, um sítio que fotografe melhor para os posts no Instagram. "Everyone is always looking for a better deal", ouço dizer com insistência.

Quem chega fresco à cidade dos anjos sofre este choque cultural e durante algum tempo não sabe em quem confiar. Resistir à tendência acaba por se revelar inútil, porque é algo que se tornou esperado. É quase divertido. Qualquer pessoa vai iniciar uma conversa no meio da rua, na fila do supermercado ou à porta do restaurante. Conversamos em eventos sociais sobre marcar qualquer coisa para mais tarde sem pensar realmente em cumprir. Toda a gente é artista, produtor ou estrela à espera de ser descoberta. Começamos a perceber as subtilezas e as tonalidades do discurso que apontam para a possibilidade de concretização de algo numa escala invisível de interesses. Em dois anos de Los Angeles, descobri que é preciso ter sempre um plano B, C e D para colmatar esta distorção. E que os portugueses que por cá residem são, por regra, das pessoas mais fiáveis que se pode encontrar.

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