Trump first
No dia em que celebra um ano, a administração Trump é protagonista do shutdown mais singular da história americana: nunca tinha acontecido tão cedo num mandato e jamais com um Congresso de maioria igual à da Casa Branca. De certa forma, os dois momentos retratam o primeiro ano presidencial.
Por um lado, tem sido uma celebração egocêntrica e narcisista por alguém que julga ter mudado a América de ponta a ponta e se assume como o responsável magnânimo dos indicadores económicos mais entusiasmantes. Vale a pena perder algum tempo aqui, até porque é um argumento que tem sido acriticamente difundido nos últimos tempos. Em primeiro lugar, a boa performance económica de 2017 não nasceu com a eleição de Trump nem a esta se deve. Depois da grave crise de 2008-2009, os EUA foram protagonizando uma recuperação sustentada do PIB e um decréscimo imparável do desemprego. O pico da criação da riqueza deu-se em 2015 (5%), mas na maior parte do segundo mandato de Obama estabilizou sempre entre esse valor e os 3%. O desemprego, em inícios de 2009, estava quase nos 11%, tendo caído sucessivamente desde então até aos 4,6% no final do mandato de Obama, valor que se vai mantendo. Mesmo os tão famigerados índices bolsistas estão numa curva sustentadamente ascendente desde 2010.
Ou seja, o clima económico positivo tem vários anos e foi capaz de, genericamente, inverter o negativismo dos picos da crise, o que não quer dizer que a distribuição da riqueza tenha sido brilhante e que não existam bolsas graves de pobreza espalhadas. Foi, aliás, entre esse eleitorado que Trump foi buscar a curta mas decisiva margem (80 mil votos) nos quatro estados da Rust Belt que lhe deram a vitória no Colégio Eleitoral (Wisconsin, Michigan, Pensilvânia e Ohio). Mas mais: esta performance de entusiasmo que continua no carril, com as sondagens a dar um nível de satisfação popular sobre o rumo da economia de 63%, deve-se muito mais aos alicerces naturais da cultura empresarial norte-americana e à maturidade das instituições do que a uma fórmula mágica trazida por Trump, dado que nada disso se reflete nos seus níveis de popularidade, hoje nos valores mais baixos de que há registo (36%). Nem mesmo a baixa dos impostos na proposta de orçamento tem nada de original: quando muito aproxima Trump de propostas clássicas republicanas, com a agravante de serem publicamente defendidas para amigos, indiferentes à classe média-baixa, e tecnicamente mal desenhadas.
Entretanto, o America first foi transformado em Trump first, mote que sempre correspondeu bem mais à verdadeira natureza do seu movimento do que traduziu uma propensão isolacionista nos modos clássicos do passado americano. Por outro lado, à disfuncionalidade crónica do Congresso - quase 20 paralisações dos serviços federais em 35 anos - é hoje acrescentado um conflito partidário de trincheiras culturais insanável. Mais: não há na dupla Trump-Pence nenhuma intenção de protagonizar uma deriva negociada e ponderada com as bancadas do Congresso, fazendo descer dessa forma os níveis de animosidade da política americana. Joe Biden, por exemplo, tinha esse papel depois de acumular anos de experiência no Senado e foi ele quem desbloqueou muitos nós no longo shutdown de 2013. Ou seja, à baixa popularidade do poder legislativo (sondagens dão valores constantes quatro vezes inferiores à do presidente) acrescenta-se um clima político entre os partidos e a Casa Branca nada saudável em democracia.
Dir-me-ão que isso não é novo e que durante os anos de Obama a atmosfera já existia. Estou de acordo, havia muito ressentimento político e identitário, com ambos os partidos incapazes de baixar o tom e até de fazer as pazes com a eleição de 2008. Mas também é verdade que a administração Obama tinha recursos e pessoas capazes de fazer as pontes necessárias, tinha válvulas de escape diplomáticas ao dispor e uma dupla na Casa Branca que dava os sinais negociais certos quando era preciso. Hoje, não há nada disto em carteira. Aliás, este é talvez o ponto que define este ano de Trump: o presidente mudou muito mais a Casa Branca do que mudou a América.
Nunca num tão curto espaço de tempo o círculo mais próximo de um presidente sofreu tantas deserções. O caos que se instalou no funcionamento da Casa Branca ao mais alto nível reflete uma lógica diametralmente oposta à anterior: se com Obama tivemos uma presidência sem casos, com Trump temos uma presidência de casos. Não falo só dos principais estrategas da campanha caídos em desgraça ou da anárquica comunicação feita por um rodopio de gente, a que acresce o ruído matinal do presidente, a cacofonia estratégica e o bluff de muitas medidas emblemáticas. Falo, sobretudo, do rasto de conluio com a Rússia ainda sob investigação, um exercício extremo que reflete o nível a que chegou a vulnerabilidade do Estado e a podridão dos partidos.
Por outras palavras, com exceção do chefe de gabinete, o general Kelly, e do conselheiro de segurança nacional, o também general McMaster, ninguém no topo hierárquico da Casa Branca se recomenda. Aliás, é também invulgar que um presidente se rodeie de tantos militares de prestígio em cargos-chave (acrescento o secretário da Defesa, general Mattis), um sinal claro da falta de recursos políticos qualificados e com sentido de Estado que o movimento Trump foi capaz de gerar, além de um apego excessivo à credibilidade militar para sobreviver no exigente interface constitucional americano. O resumo do ano é mesmo este: todas as aparentes forças de Trump não passam de uma imensidão de vulnerabilidades.