SOS Europa
Em semana de apresentação do Orçamento, Portugal foi mais uma vez diligente com compromissos europeus na esperança de os poder cumprir com sucesso e critério. Sabemos que nem sempre tem sido assim. De qualquer forma, independentemente de quem ocupa São Bento, as regras comunitárias são a camisa-de-forças das políticas públicas e ao mesmo tempo o seu alimento, pelo que não surpreende que a nossa política europeia se concentre, grosso modo e há muitos anos, numa quase exclusiva dimensão financeira, sem réstia de criatividade política para alterar os seus erros e disfuncionalidades.
Já aqui tenho defendido que Portugal sozinho tem pouca ou nenhuma margem para melhorar as regras e que qualquer agrupamento de países tem de ser criterioso, não hostil e resultar de trabalho preparatório com qualidade política para influenciar positivamente alguns dos principais debates europeus. Em certa medida, há algum caminho feito, mas o ponto principal continua a ser trabalhar e ele não passa pela moeda única, pelo Tratado Orçamental ou pela trincheira tantas vezes abjeta que caracteriza a discussão do Eurogrupo. O grande dilema da UE, sobre o qual Portugal devia estar a prevenir os riscos inerentes, é o da sua desagregação.
A começar por um brexit, o maior logro político que os ingleses (sobretudo estes) compraram, e que já está a expor o carácter medíocre da orientação política da senhora May, cada vez mais parecida com Marine Le Pen do que com Angela Merkel. O cálculo de May é este: o UKIP está num vazio de liderança e de agenda pós-referendo, logo o que o partido conservador tem de fazer é afiar as garras anti-imigração e apurar a xenofobia discursiva para mirrar os nacionalistas. A ajudar a isto, sobretudo na malha industrial do Nordeste inglês, May vê o Labour moribundo e vulnerável à debandada do eleitorado sensível ao binómio desemprego-imigração, capaz de ser cativado pela narrativa identitária e purista da primeira-ministra. Taticamente, Theresa May tenta aproveitar o clima legitimador dado pelo referendo para maximizar uma base eleitoral menos acantonada na clubite partidária e mais próxima de uma trilogia "conservadora" que lhe possa garantir uma maioria absoluta em eleições antecipadas: intervencionista, nacionalista e xenófoba.
Esta foi a principal mensagem da recente convenção nacional do partido, aliás manchando as boas tradições do conservadorismo britânico, tal como Trump tem feito ao republicanismo americano. A máxima "empregos britânicos para trabalhadores britânicos", o intervencionismo industrial com uma agenda laboral nacionalista, o chauvinismo antropológico e a defesa de uma via única para pertença à comunidade contrariam totalmente a própria ideia de um Reino Unido aberto à competição externa, à globalização económica, íman de investimento estrangeiro e mão--de-obra qualificada, com que o núcleo duro do atual governo procura pintar o rumo do país depois da saída formal da UE.
Ninguém está ciente do paradoxo que encerra tentar dotar o Reino Unido de bons acordos de comércio livre fora do âmbito da UE e insistir num nacionalismo económico castrador da livre circulação? Tendo em conta a opção de Downing Street pela via radical no diálogo com Bruxelas - como aliás se vê pela composição da equipa ministerial liderada por May para o efeito -, parece não haver margem para um roteiro alternativo depois de acionado o artigo 50.º: uma total ausência de pontes mínimas entre as partes, com Londres a exigir o melhor das regras comerciais em todo o mundo (o acesso intacto ao Mercado Único) e uma total intolerância com o pilar da livre circulação de pessoas, mesmo que nunca tenha estado sequer condicionada a Schengen.
O que o governo britânico quer é perpetuar unicamente o que de bom a UE lhe proporciona (generosas regras de livre comércio e um mercado de exportação para os serviços financeiros), sem ter de contribuir para um edifício político ou submeter-se aos critérios inegociáveis próprios a um espaço único, sem fronteiras, aberto mas com regras. E como nenhuma das partes parece ceder neste cardápio, dificilmente se chegará a um entendimento razoável em dois anos. O que agrava este ambiente é a hipótese de holandeses e franceses darem, em março e em maio, a vitória eleitoral a uma extrema-direita que odeia a UE, a livre circulação, o livre comércio, o liberalismo político e o pluralismo ideológico. Se Wilders chegar a primeiro-ministro e Le Pen a presidente, estaremos mais próximos de ter dois países fundadores a referendar a saída da UE do que a tentar melhorar o seu funcionamento.
Alguém está preparado para isto? E se a Alemanha, a votos no outono, orientar a sua escolha por um processo de afastamento das políticas comuns, que espaço sobrará para países como Portugal, que delegam 80% do seu investimento público e da sua legislação nos fundos e iniciativa das instituições comunitárias? Dir-me-ão que é uma análise tão negra como improvável. Espero que tenham razão. Mas o sinal dos tempos não está para desvalorizações nem negligências interpretativas e o pessimismo pode ser a única forma de alertar os bons espíritos a prevenirem a tragédia. A Europa já a viveu demasiadas vezes.