Requintes de malvadez

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A primeira frente de oposição e choque à decisão de Trump sobre tarifas à importação de aço e alumínio não veio da Comissão Europeia, da cidade do México ou de Otava, mas da bancada republicana do Congresso. O protecionismo e o unilateralismo comercial deste tipo de medidas não encaixam no código genético do GOP, historicamente mais sensível ao comércio livre do que os Democratas. Bob Corker, senador republicano pelo Tennessee, saiu a público para criticar a "errada abordagem ao comércio" e expor o que considera ser "um abuso de autoridade" presidencial. Outros senadores do mesmo partido, como Orrin Hatch (Utah) e Pat Toomey (Pensilvânia) viram a decisão como "um convite à retaliação" e uma fonte de custos incomportáveis para os consumidores. Todos estão a pensar de modo tipicamente americano: toda a política é local, e não seria a internacional a fugir à regra de ouro.

A imposição de tarifas bem pode contentar a base de indefectíveis de Trump espalhada pela América, sempre a salivar por murros na mesa e tiradas agressivas do seu presidente, mas não valerão de muito se a indústria não criar novos empregos nos Estados onde os efeitos colaterais da decisão mais se fizerem sentir. E não há nada que aponte para que estejam salvaguardados esses riscos, tendo em conta a porosidade da estratégia comercial americana e a cacofonia amadora dos seus protagonistas. Wilbur Ross, o secretário do Comércio, costuma apresentar-se nas reuniões com a comissária europeia Cecília Malmstrom sem nenhuma noção do que está em cima da mesa. Ou seja, a decisão comercial é potencialmente danosa à consolidação das maiorias republicanas no Congresso, a braços com uma eleição crucial em novembro, a qual definirá os termos da governabilidade da administração Trump até ao final do mandato.

Se na prática é altamente discutível o mérito interno da opção tomada, no plano internacional a metodologia é, também, merecedora de crítica. Vergar os aliados mais próximos dos EUA para obter coercivamente concessões destes à mesa das negociações não garante nem este objetivo - a ver pelas retaliações anunciadas do México, Canadá e UE - nem que os três passem a seguir uma liderança de Washington que ponha, com outra força, a China a cumprir critérios básicos de reciprocidade económica e comercial, ou alguns dos padrões que a pertença à OMC exige. Se a estratégia de Trump era a de alargar a frente anti-China, duvido que seja pela via do pânico comercial aplicado aos aliados que o conseguirá. Ou seja, politicamente a decisão é também danosa das alianças dos EUA e que tanto têm acautelado a sua longa proeminência na ordem internacional no último meio século.

Mas, como já percebemos, nada disto tira o sono à administração Trump. É aqui que o timing assume requintes de malvadez sobre o sensível momento europeu. A primeira consequência das tarifas será a demonstração ou não da capacidade política da Comissão Europeia em responder à altura do problema, dado ser a política comercial uma reserva exclusiva sua. A pressão é enorme e os riscos também: globalmente, as economias dos EUA e da UE valem sensivelmente o mesmo, sendo também os dois espaços regionais mais interdependentes em termos de exportações, importações, investimento direto e empregos. Se a indústria automóvel alemã for afetada com estrondo, como parece ser o objetivo americano, podemos ter Berlim perpetuamente ensimesmada com essa frente interna e alheada das reformas que o euro precisa para se blindar dos eventuais efeitos de uma nova crise, desta feita com epicentro em Roma e não em Atenas. Ou, se quisermos, com epicentro em Roma e efeito de contaminação não só em Atenas mas em Paris, Madrid ou Lisboa.

É aqui que surge o segundo teste às tarifas americanas: que resposta dará o eixo Paris-Berlim. Mais: se faz sentido continuar a falar na sua existência. Este não é um dilema qualquer. Macron tenderá a pressionar ainda mais Berlim para obter as respostas que ainda não teve ao roteiro que apresentou para a zona euro. Para tal, acenará com catastrofismos italianos, espanhóis, proteccionismo americano e com a senhora Le Pen a espreitar o próximo ciclo eleitoral que se inicia já nas europeias de 2019. Se terá a atenção de Merkel é outra questão. Que precisa dela como até agora não teve, parece-me cada vez mais imprescindível ao sucesso da sua presidência. Ou seja, uma nova crise do euro centrada em Itália e o fracasso do consulado Macron têm tudo para encurtar o tempo da grande coligação alemã e abrir o espaço que Le Pen precisa para atacar, outra vez, o Eliseu. Nessa altura, não tenhamos dúvidas: addio, adieu, auf wiedesehen, goodbye União Europeia.

O espectro do desmembramento da UE não pode ser desvalorizado. Este alarmismo não é um exercício retórico, desprovido de matéria-prima, mas um alerta que deve fazer tocar campainhas onde a responsabilidade é máxima: nos Estados membros que assumiram a integração europeia como código genético na consolidação das suas democracias; e partidos políticos que ao longo de décadas foram estabilizando uma ampla maioria social pró-europeia. O problema é que os primeiros atuam envergonhadamente e os segundos estão cristalizados ou, em vários países, em processo de extinção. Em último caso, poderemos ter de enfrentar, sem coesão comunitária à altura, novas crises simultâneas com uma probabilidade elevada de as gerirmos, à escala europeia, de forma insuficiente, impreparada e até danosa. Esse será um novo momento-limite da história europeia. Noutros com igual dramatismo pudemos contar com os Estados Unidos como uma autêntica grande potência europeia. Trump mostra que com ele isso não acontecerá.

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