Pior é possível

Publicado a
Atualizado a

Theresa May apresentou o manifesto eleitoral assente numa profecia de renovação por via do brexit. Duvido que a própria acredite nesse amanhã que canta. O seu desconforto com o tema não é novo e durante a campanha para o referendo de 2016 ficou mais ou menos evidente como é que a então ministra do Interior se posicionava: sem entusiasmo por nenhum dos lados, algumas vezes valorizando a permanência, outras ocultando o que pensava, não fosse o dia seguinte cair-lhe nas mãos. Ao longo dos meses, essa sinuosa posição política foi, obrigatoriamente, sendo moldada pelas circunstâncias. Primeiro, pelo roteiro que saiu do referendo. Segundo, pela transmissão de poder na chefia do governo. O dia seguinte tinha mesmo caído no colo da senhora May, o que não quer dizer que ela soubesse muito bem o que fazer daí em diante.

À incomodidade natural, Theresa May acrescentou o peso do novo cargo. Um papel que exigia a definição de um rumo que respeitasse o resultado do referendo, mas fizesse alguma gestão de danos, apresentasse alternativas imediatas a um caminho irrevogável de saída da União Europeia e posicionasse a primeira-ministra como o pivô de um governo com sensibilidades múltiplas em relação aos termos da negociação com Bruxelas. Se May já era uma política desconfortável com as confusões geradas pelo brexit, mais exposta ficou ao ter de equilibrar um cabinet disfuncional. Por isso teve de fazer uma avaliação em tempo útil: sem legitimidade reforçada, o seu papel desgastar-se-ia rapidamente; não era possível lidar com autoridade na frente interna e na europeia sem um mandato claro dado pelos eleitores; e a convocar eleições antecipadas que fosse quanto antes, porque não só o Labour estava a uma distância histórica como era preciso dizer a Bruxelas, Berlim e Paris que em Londres morava uma primeira-ministra com uma maioria fresca e alargada. O cálculo estava certo e a avaliação política tinha todo o cabimento. A questão é, no entanto, mais complexa do que a mera leitura do momento.

Por um lado, Theresa May é uma decisora refém dos seus desconfortos, venham eles da magnitude do dossiê existencial do brexit ou das fragilidades da natureza política da primeira-ministra: nem transmite convicção na defesa de um rumo nem consistência na exequibilidade dos argumentos que o compõem. Por ter consciência disto é que precisou de ir a eleições. Apesar de tudo, tem Jeremy Corbin pela frente, um político cristalizado no Labour das décadas de 1970 e 1980, mais próximo de um partido marxista do que da social-democracia contemporânea. Além disso, apesar das fracas figuras, a popularidade de May tem-se mantido superior à de Corbyn, só que acontece que o Reino Unido não vive num concurso de imagem e popularidade, mas num momento existencial e decisivo para o seu futuro próximo, e os eleitores têm consciência disso.

Antes do referendo de junho de 2016, a economia britânica era a que mais crescia entre os países do G7. Um ano depois caiu para o fim da lista. A inflação subiu e tornou as importações mais caras. E como a promessa de preservação do país no mercado único caiu por terra, os agentes económicos passaram a contemplar o risco político que as negociações com Bruxelas trazem à economia real, a começar pela total ausência de um plano B que preveja alternativas comerciais à altura das vantagens comunitárias. Ora, como elas simplesmente não existem no menu de acordos disponíveis, serão as regras da OMC a imperar no Reino Unido, que além de ter futuramente de pedir adesão à organização vai ter de negociar um por um os acordos em vigor que a UE tem com países terceiros (mais de 700), em matérias tão sensíveis como comércio, transportes, agricultura, regulação financeira ou energia. Do ponto de vista logístico, é uma ilusão conseguir isto num processo temporal paralelo à negociação com Bruxelas, de forma que os custos da saída sejam imediatamente compensados pela manutenção de vínculos internacionais, garantindo assim alguma estabilidade económica ao Reino Unido. Só um político desfasado da realidade pode pensar que nenhum desses 160 países queira tirar vantagem negocial perante a fragilidade com que Londres se sentará à mesa, protelando as negociações.

Mais: estudos recentes do King"s College e do Office of Budget Responsibility apontam um caminho de absoluto desastre para as contas públicas e, por via disso, para a liquidez financeira do Estado, inviabilizando por completo as promessas de investimento que May e Corbyn têm, irrealisticamente, feito em relação à saúde, à educação ou à segurança. Cair nas regras da OMC pode provocar uma queda de 3% do PIB ao ano, bem como um declínio de 60% nas trocas comerciais com a UE em igual período. A promessa de May - entretanto desmentida por David Davies à BBC -, de reduzir 185 mil imigrantes até 2022, custaria por ano seis mil milhões de libras à economia britânica. Talvez por pressentirem o desastre que aí vem - acelerado se em março de 2019 não houver acordo, atirando o Reino Unido para um vazio geopolítico sem fim à vista - é que os manifestos conservador e trabalhista são dos mais intervencionistas de que há memória. Ambos tentam criar a ilusão de controlo da situação, de protetores da sociedade, de garantes da multiplicação de recurso. Ambos mentem com todas as letras. Mas enquanto May está a ser penalizada, Corbyn vai passando pelos pingos da chuva. Se o Parlamento ficar "pendurado", o que não é irrealista, isso só reflete o atual estado do Reino Unido: com a corda ao pescoço depois de esta elite de líderes partidários ter irresponsavelmente levado o país para um buraco. E o pior é que nenhum sabe como sair de lá.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt