Linhas vermelhas
A primeira metade do ano europeu ficou marcada pelo alarmismo com a extrema-direita demagógica e populista, muito por culpa da incerteza nas eleições holandesa e francesa. A enquadrar essa agenda, com nuances e gradações de estilo e conteúdo, Trump instalava-se na Casa Branca, Putin seguia projetando o seu perfil de "estadista" - apreciado por gente insuspeita por esta Europa fora - e Erdogan, num estilo executivo semelhante, reagia em força à ressaca do golpe e fazia o pleno dos homens fortes na geografia que mais influencia a UE do exterior.
Mas se a Holanda e a França respiraram de alívio e o clima pré--eleitoral na Alemanha está hoje mais distendido, o triângulo autoritário segue sem rivais. Ou seja, esse círculo circundante de grandes potências vai continuar a influenciar a política feita na UE nos moldes em que exerce o seu culto da personalidade e a sua agenda interna. Dali, pese os interesses permanentes com os vários países europeus, nada de saudável chegará a uma democracia liberal na UE. A exigência em cada capital europeia que preze este modelo político é hoje, por isso, tremendamente elevada: continuar a ter interesses permanentes com grandes potências como os EUA, a China, a Rússia ou a Turquia, mas a ser absolutamente intransigentes na defesa dos princípios que balizam o espaço comunitário onde, felizmente, muitos dos sistemas democráticos se consolidaram. É o caso de Portugal.
O ano político europeu parecia, então, estabilizado, mesmo com Itália sob brasas e as reformas na arquitetura do euro por fazer, mas a verdade é que não está. Se o nacionalismo partidário foi derrotado em importantes eleições, o nacionalismo de Estado continua a fazer das suas. A segunda metade do ano está a trazer ao topo mediático o alarmismo com a concentração de poder, o autoritarismo de Estado, a violação da separação de poderes e a paranoia controladora da sociedade. Só que isto passa-se desde 2010 na Hungria e desde 2015 na Polónia, sem esquecer as derivas checa e eslovaca e um certo roteiro crónico de oligarquismo corrupto na Bulgária e na Roménia, que, apesar das diferenças, continuam com tentações próximas do antigo regime. Esta semana, em Sófia e em Bucareste, foram várias as pessoas que me descreveram os anátemas da primeira década de adesão e o vínculo de proximidade que sentem com Orbán. Mesmo sabendo os constrangimentos históricos, sociais e económicos que diferenciam os vários percursos - ausência de um Imre Nagy ou de um Lech Walesa; subjugação a Moscovo sem tentativas de rutura; pobreza endémica -, parece-me sólido afirmar que o futuro próximo dos países de Visegrado e dos dois banhados pelo mar Negro é de maior sintonia estratégica com Orbán do que com Macron ou Merkel.
O que isto significa é que não basta olhar com preocupação para os atropelos à democracia na Polónia quando milhares de pessoas saem à rua contra a politização há muito em marcha do sistema judicial. O mesmo se passa na comunicação social. Também não basta gritar "que vem aí o fascismo" apenas em 2017, quando em Budapeste milhares saíram à rua para travar uma lei que encerrava a maior universidade húngara apenas por perseguição e paranoia política de Orbán. O autoritarismo na Hungria regressou muito antes deste caso, tem sintomas altamente preocupantes e tem sido tratado pelas instituições europeias (Comissão à cabeça) e famílias políticas (PPE acima de todas) de forma desprezível. É por isso que não dá para desvalorizar derivas autoritárias, elas têm de ser atacadas mal surjam os primeiros sinais.
A gula por mais iliberalismo - como o próprio Orbán gosta de definir o seu modelo - não vive do fator Putin, como a rede partidária populista em vários Estados membros. Esse fator não faz a ponte entre a situação polaca e húngara, como sabemos. Trump sim, é motivo de admiração de ambos, tendo Orbán sido o único na UE a expressar o seu encantamento durante a campanha americana e de, recentemente, toda a hierarquia do Estado polaco ter sido abençoada pela visita do presidente americano no seu caminho por mais abuso de poder, nacionalismo identitário, euroceticismo e intolerância. É por isso que é ainda mais preocupante do que a rede de partidos anti-UE: porque estão enraizados nos sistemas e o corroem por dentro. Há nessas sociedades um desejo de saída da UE que justifique a deriva agressiva em curso? Não. O discurso anti-Bruxelas é instrumental à agenda nacionalista, nenhum político cavalga a rutura quando depende dos fundos comunitários para fazer obra e ficar no poder.
Exatamente porque estamos a entrar na fase de negociação do próximo orçamento comunitário - previsivelmente sem a fatia britânica - e porque o reforço do eixo Paris-Berlim não colhe simpatia em Varsóvia, Budapeste ou Bucareste, é provável que se acelerem as derivas autoritárias antes que, à mesa do orçamento, o destino das fatias venha condicionado às práticas de governação. E é bom que venham. É é bom que não se continue a tapar com o tapete as vigarices à democracia que minam silenciosamente a UE. Apesar de tudo, de uma coisa sabemos: ao silêncio de uns respondem milhares que não querem regressar ao passado. Em Varsóvia, Budapeste, Bucareste e Sófia ainda podemos ter orgulho neles.