SOS Pequim
Terminei o último artigo argumentando que a existir uma solução para a Coreia do Norte ela está nas mãos da China, partindo do pressuposto de que o roteiro não passa por um qualquer ataque preventivo ao aparelho militar de Pyongyang por parte da Coreia do Sul, do Japão ou dos EUA, nem que a cadência de testes não terminará num ataque despropositado que inicie um conflito descontrolado. Com isto não digo que estas duas vias não possam acontecer, defendo é que são indesejáveis. Posto isto, a China tem duas vantagens sobre todos os outros: exerce um domínio sobre a economia da Coreia do Norte (85% das suas trocas exteriores) e conhece como ninguém as suas capacidades militares. No entanto, tem visto a presidência de Kim Jong-un conquistar margem decisional suficiente para ameaçar a região a um ritmo nunca visto, ou passar pelas sanções internacionais sem que o regime vergue ou trave as suas intenções nucleares.
Por outras palavras, a influência chinesa sobre Pyongyang está a ser contornada por um regime sem aliados alternativos e com uma postura de confrontação com os grandes atores do Nordeste Asiático. Ora, isto causa um enorme embaraço em Pequim, como prova a debandada na sua imprensa de todos os que ao longo de anos foram solidários com a dinastia Kim ou defendiam um apoio incondicional face ao cerco americano na vizinhança chinesa. Hoje, vemos mais vozes de distanciamento e até defensores do endurecimento das sanções. Quer isto dizer que Pequim está mais próxima da grelha de decisões aparentemente levantada em Seul, Tóquio e Washington (com as nuances conhecidas)? Não. Pequim está numa encruzilhada e a Coreia do Norte continua, hoje com um grau mais elevado de alarme, a ser fundamental no equilíbrio de poder regional disputado com Washington.
A China não tem interesse nenhum num conflito incontrolável criado por quem quer que seja. O tratado bilateral obriga-a ao auxílio a Pyongyang em caso de ataque externo, mas leva-a para o plano da decisão sob pressão no caso de uma investida militar ter origem no regime de Kim Jong-un. Em vésperas de congresso do PC chinês, definidor do próximo ciclo da administração Xi Jinping, e em paralelo à megaoperação internacional de charme económico-diplomático como é a Nova Rota da Seda e do desejo assumido há dias de criar um BRICS plus (com novos membros, nomeadamente o México), Pequim quer sobretudo previsibilidade na vizinhança. Mas não só. Quer garantir uma crescente perceção benevolente sobre as vantagens em criar laços de proximidade consigo nos termos que define; quer demonstrar que decide autonomamente o modo e o timing com que expande soberania marítima ou territorial disputada na região; e quer tirar benefício da menor confiança de vários aliados asiáticos com a América de Trump. O comportamento da Coreia do Norte inviabiliza todos os pontos deste roteiro: não traz previsibilidade alguma, procura recusar a força e a influência chinesa aos olhos de terceiros, empurra a Coreia do Sul para uma indisputável proteção americana e acelera o posicionamento do Japão numa normalidade militar constitucional que revê totalmente os termos da sua ação desde o pós-Guerra, além de consolidar o seu mercado securitário no fornecedor americano. Nada no comportamento de Pyongyang favorece os interesses estratégicos da China.
Então que opções tem Pequim sobre a mesa? Postas de lado a conivência com uma mudança de regime - ponto de honra inegociável para a China - ou sequer com um ataque cirúrgico concertado com o exterior (impossível confiar num plano destes sob chapéu americano com Trump ao comando e depois do que se passou no Afeganistão, no Iraque e na Líbia), restam aparentemente três opções. A primeira é renovar o canal diplomático com Kim Jong-un de forma a convencê-lo a sentar-se à mesa com Pequim, em troca de um veto a novas sanções da ONU ou a embargos comerciais, aumentando--lhe o financiamento direto.
A segunda é desviar do aparelho científico e tecnológico norte-coreano aqueles que têm contribuído para o desenvolvimento do programa nuclear, muitos deles depois de terem estudado e trabalhado na China. Um dos principais objetivos com esta catadupa de testes é precisamente ir afinando a tecnologia militar: sem a massa cinzenta interna, cresce a dependência exterior, logo a vulnerabilidade do regime. Para isto, Pequim precisa de informações certeiras e canais de intromissão sem erros.
A terceira passaria por aprovar novas sanções que fizessem mesmo mossa na sociedade norte-coreana, pusesse a elite do regime em xeque e obrigasse o seu líder a pedir auxílio a Pequim. Este quadro daria à China uma nova autoridade capaz de congelar novos testes nucleares e conduzir o regime a um quadro normativo internacional também ele necessariamente renovado.
Se o problema da primeira opção é ser excessivamente otimista e até ingénua, o das outras duas vias é acicatar o lado beligerante e imprevisível de Kim Jong-un. Se os EUA desvalorizaram a ameaça norte-coreana nos anos de Obama, perdendo a hipótese de ter mais vezes a China ao seu lado numa solução duradoura, a margem com Trump é muito menor. Não só a relação entre Washington e Pequim não está numa rota de convergência mínima, como a inconsistência narrativa da administração americana torna tudo ainda mais imprevisível. No meio disto tudo é mesmo bom que Xi Jinping lide com maturidade com tudo isto. Para imberbes descabelados já bastam Trump e o senhor Kim.