Choque sistémico colossal
Não há memória de uma derrota tão colossal de um primeiro-ministro na era moderna da política britânica. Quem mais se aproximou foi o trabalhista Ramsay MacDonald em 1924, por 166 votos, menos 64 do que Theresa May. Westminster viveu, por isso, um dia singular na sua história, o que em condições normais levaria de imediato à demissão da primeira-ministra, numa fuga humilhante pela porta dos fundos. Curiosamente, não é este o cenário mais plausível, pelo menos na forma abrupta que muitos esperavam.
Por um lado, May está mais tentada a ir de imediato a Bruxelas colher outro pragmatismo numa inovadora flexibilidade dos 27, dramatizando internamente ao limite o cenário do brexit desordenado ou mesmo da reversibilidade do brexit, permitindo-lhe rumar a Westminster para nova votação. Pode parecer suicídio, absurdo até, mas a lei concede-lhe isso. Também já percebemos que decretar o fim da linha de Theresa May tem sido manifestamente exagerado, o que abona a favor das suas sete vidas e da forma competitiva como tem encarado esta luta. Por outro, vai amanhã ganhar novo balão de oxigénio, quando a moção de censura apresentada por Jeremy Corbyn for chumbada. E é aqui que o problema estrutural britânico se encontra: os dois grandes partidos nunca, em momento algum, estiveram à altura do tremendo desafio que é o brexit, definhando credibilidade política, espalhando incompetência técnica, expressando ignorância sobre a UE, cavalgando mentiras, incongruências e logros, dando ao mundo um triste espectáculo de ajustamento e gestão do mandato popular expresso em 2016.
Esta noite, 118 deputados conservadores preferiram alinhar com a oposição a defender a sua primeira-ministra, o que mostra bem a dimensão do que sempre esteve em causa neste fatídico processo do brexit: uma questão existencial ao Reino Unido reduzida a uma luta de trincheira interna que mistura uma ambição incontrolável com um fanatismo ideológico. Esta ferida aberta vai durar anos a curar. Quem quer que venha a ser o próximo líder do partido, dificilmente terá as condições mínimas para federar visões tão polarizadas como as que o brexit cavou, o que à partida inviabiliza uma proposta política eleitoral capaz de chegar à maioria absoluta (por isso May foge de eleições) ou sequer de poder enfrentar um segundo referendo. May foge deste cenário porque sabe que seria a oficialização do estilhaçar do partido conservador.
No lado trabalhista, se é natural que se pense em derrubar um opositor associando-o a um mau acordo, as costas não estão menos aliviadas de responsabilidade. Corbyn nunca teve o partido unido, nem demonstrou o mínimo de qualidade política como alternativa ao que diz ser um mau acordo. Fez uma terrível campanha no referendo, é há décadas frontalmente contra a União Europeia, pisou o risco do enamoramento autocrático mais do que uma vez e quando lhe cheirou finalmente a sangue, acenou com moções de censura, eleições antecipadas e segundos referendos. Ou seja, quando se pedia alguma frente coordenada nos Comuns para levar o brexit ao melhor roteiro ordenado possível - capaz de minimizar os danos económicos e sociais -, os trabalhistas ofereceram mais ruído e mais caos. Ninguém duvide que serão também julgados politicamente por isto.
Por outras palavras, o brexit não só mergulhou o Reino Unido numa pré-ruptura nacional e constitucional - apenas dois anos após a questão ter ficado fechada pelo referendo à independência da Escócia - como pode ter dado um forte empurrão à fragmentação partidária. Aconteça o que acontecer - saída com ou sem acordo, segundo referendo com pergunta e resultado em aberto, reversibilidade unilateral do brexit - nada será como dantes nos dois grandes partidos britânicos. Esta é a maior transformação provocado pelo brexit, mesmo ainda antes de sequer acontecer.
Investigador universitário