Ditadura do simbólico

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Há duas maneiras de olhar os principais acontecimentos na política internacional: pelo lado coreográfico ou pelo conteúdo. Nos últimos dias estivemos entretidos a dissecar os 101 ângulos da foto que marcou o G7, mas perdemos pouco tempo a discutir o que verdadeiramente se passou, sobretudo os perigos do desalinhamento total entre os EUA e a UE. A cimeira de Singapura vai seguindo o mesmo filão.

Por um lado, gostamos de eventos "históricos", mesmo que a história que os precede seja pífia e os seus efeitos de duvidosa aplicação. Tomamos como garantidos três ou quatro manifestações de vontade entre partes que não oferecem mínimos de credibilidade no respeito por acordos assinados, veja-se o que aconteceu com o acordo sobre o nuclear do Irão ou o histórico de promessas de Pyongyang nas últimas duas décadas.

Uma "cimeira histórica" deve ser sempre o culminar de um processo negocial intenso, duro e implacável, de preferência pondo o ónus no prevaricador, neste caso a Coreia do Norte. Nada disso aconteceu, o que, por exclusão de partes, implica que o encontro de Singapura seja o início de um processo, não o culminar do mesmo.

Que processo é esse? A ver pelos pontos acordados, praticamente o mesmo que as partes subscreveram em junho de 1993, na reunião de Nova Iorque. Na altura, sem a presença dos respetivos líderes políticos, alinhou-se pelo roteiro da desnuclearização e até pela defesa da reunificação da Península. Em 2000, quando o pai do atual líder norte-coreano convidou Bill Clinton, este preferiu enviar a secretária de Estado Albright ouvir um rol de promessas sobre desnuclearização e transparência. Sabemos hoje o sucesso e a credibilidade das mesmas: em 2006 Pyongyang testou pela primeira vez a arma nuclear.

A diferença é que, em Singapura, os dois líderes colocaram todo o seu capital político no sucesso do que agora se inicia. De que vale isto? Tudo. Para Kim, o reconhecimento da paridade estatutária e da mais valia que foi ameaçar a região com ensaios nucleares. Para Trump, sem especialistas na Coreia no seu círculo de conselheiros, uma gestão perigosa aos efeitos negativos que o insucesso da ambição desta cimeira terá em Seul, Tóquio e no papel asiático da América no futuro. A coreografia dos grandes eventos é um ângulo mediaticamente apetecível, mas continua a haver muito mais para lá da política dos apertos de mão.

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