A interminável história do Brexit
Foram três anos e meio penosos. A ressaca do referendo deixou toda a gente sem saber o que fazer dali em diante. Os defensores da manutenção entraram num longo período de choque, seguido de stress pós-traumático, numa desesperante falta de coesão, quer na mensagem quer em mensageiros. Quando a frincha da janela da reversão do processo se abriu, manifestaram toda a sua ineficácia política, incompetência e desbarataram a oportunidade. Os conservadores tinham uma minoria a desfazer-se nos Comuns, mas Corbyn, como crente brexiteer que sempre foi, acabou com qualquer sonho. Resultado final: os primeiros recuperaram a maioria com uma mensagem simples de fim de ciclo e o último caiu em desgraça.
Já os defensores da saída, os manipuladores incansáveis de mentiras e os entusiastas do nacionalismo inglês, juntaram-se numa amálgama de pândegos para lidar com a batata quente. Alguns mostraram querer acautelar os danos colaterais da saída desordenada, outros divertiram-se enquanto o caos se impôs, outros foram ainda mudando de tática em função das conveniências eleitorais. Na reta final, por exaustão processual, Bruxelas concedeu umas alterações suficientes para acomodar uma eleição britânica antecipada capaz de terminar com o debate interno, clarificando a mensagem e o calendário.
Bruxelas acabou por dar a vitória a Johnson não por acreditar nos méritos do Brexit ou por uma súbita simpatia com o primeiro-ministro, mas por arrumo de prioridades e fecho de ciclos de desgaste coletivo, emitindo um sonoro sinal de profundo desprezo para com a liderança trabalhista. As sucessivas derrotas de Corbyn servem também de vacina a todos os partidos social-democratas relevantes da Europa sobre o que não fazer se quiserem manter a relevância política.
Mas os efeitos desta saga que hoje chega ao fim da primeira etapa não se ficam por aqui. Como aqui defendi, a maioria absoluta conquistada em dezembro dá a Boris Johnson um poder relativo, desde logo porque foi acompanhada do reforço do independentismo escocês e do debate sobre a reunificação irlandesa. A evolução destas duas frentes, gestão que Johnson vai ter que fazer em paralelo aos duros meses de negociação com Bruxelas, torna a clarificação saída das legislativas num triângulo em choque potencial, tirando qualquer sentido à palavra Brexit.
Na verdade, como venho argumentando, o que temos é um Engxit, com Gales arrastado, em contraciclo com a vontade de permanecer dos escoceses e dos norte-irlandeses. Regimes de exceção comercial e unilateralismo independentista não são propriamente os melhores condimentos para a coesão política do Reino, muito menos em choque potencial com um governo que se considera todo-poderoso. Esta é, aliás, a postura com que abrirão formalmente as negociações com Bruxelas a 3 de março, um mau presságio para quem se senta à mesa com o intuito de forjar um acordo de livre comércio inspirado no que de melhor tem o mercado único e no que os ingleses desdenham. Esta metodologia não só carrega uma arrogância desnecessária a quem quer fechar o período de transição no último dia de 2020, como vai obrigar Bruxelas a defender os seus interesses críticos com mais vigor do que até aqui.
Precisamente para não deslaçar um elemento positivo deste processo - a surpreendente coesão dos 27 nestes três anos e meio -, e porque as matérias em negociação mexem com demasiados interesses nacionais, podendo ter efeitos políticos nos Estados membros, fica difícil acreditar que o tom e o modo favoreçam a vontade de Johnson em fechar a segunda parte do Brexit no final deste ano sem ter de, mais uma vez, violar uma promessa e pedir a extensão que, em última análise, pode ir até final de 2022. Até lá, o Reino Unido - ou em desunião acelerada - mantém praticamente todos os deveres e direitos de um Estado membro, sem no entanto possuir qualquer poder de decisão ou veto na UE.
O prolongamento, ou seja, a terceira etapa deste penoso processo, começaria após o final da transição, pressupondo que até lá as partes conseguem montar uma arquitetura de relacionamento futuro satisfatória, que contenha vários danos e maximize as políticas de contacto que, esperemos todos, nos mantenham próximos. Nos intervalos, Trump promoverá o seu bullying sobre a UE, encantará os ouvidos de Johnson com promessas, Pequim continuará a sua marcha geopolítica corrigindo e acertando vários passos na Europa, enquanto Moscovo manterá a pressão habitual sobre várias economias e sistemas partidários.
É neste contexto de stress estratégico que a União viverá nos próximos anos, com três mudanças estruturais em curso sem verdadeiramente percebermos se faremos uma boa gestão política de todas. À cabeça, os reflexos da primeira saída de um Estado membro. A segunda, os ajustamentos económicos e políticos às mudanças provocadas pelas alterações climáticas. E a terceira, as adaptações nos comportamentos de vários Estados membros que em muitas matérias se escondiam atrás das posições do Reino Unido no quadro europeu e que, com a sua saída do processo de decisão comunitário, vai exigir mais preparação, profissionalismo e provavelmente outra geometria variável de articulação de interesses com novos Estados membros.
Não se pode fazer política europeia sem conhecer a Europa, os europeus e os seus interesses complexos. A cristalização de uma lógica de coligações de vontade ou, se quisermos, de regionalismos europeus a várias velocidades é um cenário que em parte já existe mas que marcará a gestão política da União nos próximos anos, também perante a centralidade natural de Paris e Berlim nesta fase ou como contraponto a essa predominância.
Todos os interesses nacionais de Portugal, o músculo das suas políticas públicas, a sua afirmação atlântica e a manutenção de país-plataforma de entendimentos geograficamente dispersos, vão jogar-se neste competitivo quadro europeu. Quem o souber entender e melhor antecipar, terá a vantagem do seu lado.
Investigador universitário