A espargata persa

Ao contrário das manifestações de junho de 2009, as de janeiro de 2018 trazem um acumulado sangrento de guerras civis em que o Irão tenta marcar uma posição
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Desde os protestos de 2009 e os que temos acompanhado nos últimos dias, muita coisa aconteceu dentro e fora de portas do Irão. Em 2009, o chamado "movimento verde" tinha uma clara natureza política enquanto reação à reeleição do presidente Ahmadinejad, ato considerado pelos manifestantes como fraudulento: "onde está o meu voto?", era o grito que mais se ouvia nas ruas de Teerão. O derrotado, Mir Hossein Moussavi, ex-primeiro-ministro durante os longos e traumáticos anos da guerra Irão--Iraque, foi o principal rosto desse movimento de oposição. Tanto ele como Mehdi Karoubi, também importante à época, permanecem ainda hoje em prisão domiciliária. A primeira diferença está aqui: nos protestos deste início de 2018, não há nem uma liderança clara nem sequer um núcleo duro facilmente identificável como tal. E também não se pode dizer que exista uma natureza semelhante a 2009, dado que ninguém discute a legalidade ou a legitimidade da reeleição do presidente Rouhani em maio de 2017, o "moderado" de serviço à segunda volta.

Ainda em 2009, vimos que a maioria das manifestações se deram em zonas urbanas, com especial incidência em Teerão, ocupadas sobretudo por uma classe média universitária, aliás desvalorizada e menosprezada constantemente no Ocidente. Hoje, os protestos têm não só uma dispersão territorial muito maior - embora sejam no seu todo de menor dimensão -, como uma agenda reivindicativa mais difusa. Para tal efeito, não será descabido o facto de em 2009 só existir um milhão de smartphones no Irão, enquanto hoje praticamente são 50 milhões a propagar mensagens. O "onde está o meu voto?" deu lugar ao "deixem a Síria, pensem em nós" com que se iniciaram as marchas a 28 de dezembro em Mashhad, um clássico bastião xiita. Noutras cidades, como a sagrada Qom, ouviram-se saudosistas do xá e o depois disseminado "morte aos Guardas da Revolução", cujo grito chegou ao Curdistão iraniano e ao Khuzistão, a província do golfo Pérsico responsável por 85% da produção onshore nacional de petróleo e 60% de gás, mas que permanece refém de altos índices de pobreza e desigualdade. Ou seja, se em 2009 havia uma raiva acumulada desencadeada por um episódio político, em 2018 a raiva parece ter características mais profundas e geograficamente mais alargadas. Vale a pena explorar as duas principais.

A primeira, a meu ver, resulta das expectativas criadas pela eleição de Rouhani, em 2013. Apresentado como um reformista e um negociador, teve o grande mérito de conseguir impor internamente junto da cúpula do regime os méritos de um acordo que permitia monitorizar o programa nuclear em troca do alívio de sanções que estavam a minar totalmente a economia iraniana e a hipotecar o futuro de uma sociedade maioritariamente abaixo dos 40 anos. Ajudado pela administração Obama e pela UE, Rouhani foi saudado efusivamente nas ruas com esse triunfo diplomático, visto por muitos como uma fuga ao estatuto de pária com o qual não queriam ser identificados. Depois da assinatura do acordo, em 2015, a expectativa aumentou brutalmente, mas o tempo e o modo não ajudaram: era preciso inverter o desemprego jovem (mantém-se nos 30%), controlar a inflação (baixou de 30% para 12%), abrir um país de 80 milhões de consumidores ao investimento estrangeiro e dar início a um processo anticorrupção no aparelho de Estado. Rouhani teve sucesso nalgumas frentes e a reeleição parecia validar o seu projeto, mas o caminho é muito mais complicado do que parecia.

O segundo elemento de fragilidade resulta, não da denúncia do acordo nuclear por Donald Trump, mas da radial de incursões externas no Médio Oriente alimentadas pelo Orçamento do Estado e que minam completamente a capacidade financeira do governo para fazer face a vários colapsos iminentes. Só o custo com a guerra na Síria e o apoio ao Hezzbolah custam ao Irão em média dez mil milhões de dólares por ano, qualquer coisa como o valor do seu défice. A chamada "zona de resistência" sob liderança iraniana (Líbano, Síria e Iraque) tem sugado quase todos os recursos a uma economia a tentar sair do coma profundo das sanções, defraudando as expectativas daqueles que viam em Rouhani o homem capaz de inverter o estado calamitoso da trilogia económico-financeira interna: a gestão danosa dos recursos hídricos, uma das responsáveis pelo aumento brutal de preços nos bens alimentares no último trimestre de 2017 (40%-50%), a precariedade da banca e a rutura do sistema de pensões.

Ao contrário das manifestações de junho de 2009, as de janeiro de 2018 trazem um acumulado sangrento de guerras civis em que o Irão tenta marcar uma posição de vitória (Iraque, Síria) e de influência nos destinos de um conflito em escalada (Iémen) ou de um país em constante instabilidade (Líbano). Basta ver como o regime propaga o dom da ubiquidade do general Soleimani nos vários teatros de guerra regionais, o carismático líder dos Qods, a unidade de elite dos Guardas da Revolução. No entanto, qualquer império sabe, ou deveria saber pela história, que uma espargata prolongada para maximizar o seu autoidolatrado excecionalismo acaba por ter, mais cedo ou mais tarde, um preço altíssimo, para não dizer fatal. É isto que as ruas estão a dizer aos dirigentes iranianos.

Investigador universitário

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