Quem nos salva de nós próprios?

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O debate dos últimos dias sobre o futuro dos órgãos de comunicação social tem um pecado original: nunca, em momento algum, se fez uma verdadeira introspeção sobre as responsabilidades que jornalistas, direções, administradores e acionistas têm no estado a que chegou este setor. Pede-se ao Governo medidas de apoio, à União Europeia que imponha regras, aos anunciantes que invistam mais. Definem-se inimigos como o Google, o Facebook ou as empresas de clipping, mendiga-se aos leitores, ouvintes e telespectadores que valorizem o produto jornalístico e que o paguem, mas nunca se olha para dentro do setor. Nunca se identificam os erros que nós próprios cometemos e que só nós, como um todo, podemos corrigir.

Esta semana, na conferência organizada pelo Sindicato dos Jornalistas sobre o financiamento dos media, responsáveis de oito órgãos de comunicação social desfiaram os problemas que o setor enfrenta e enunciaram as soluções do costume: é preciso fechar conteúdos; os órgãos de comunicação social não se podem canibalizar uns aos outros; é preciso criar regras europeias que obriguem a Google e o Facebook a pagar pelos conteúdos que usam; o Governo tem que apoiar indiretamente a Comunicação Social; é preciso mais literacia para os media. E tudo isto é verdade. Mas tudo isto é curto. Muito curto.

Ricardo Costa, diretor-geral do Grupo Impresa, lembrava que o jornalismo é uma indústria, por muito que aos jornalistas isso custe a admitir. E tem toda a razão. Mas faltou dizer o resto: o jornalismo é uma indústria que produz um determinado produto. E se o produto não for bom, ninguém o compra. Se ninguém o comprar, os anunciantes não querem estar presentes. E se os anunciantes não quiserem estar, é o fim.

Não é nada que não tenha acontecido noutros setores de atividade. Na década de 90, a indústria do calçado teve de morrer primeiro para renascer, quando percebeu que a concorrência tinha mudado e que os consumidores não se importavam de pagar mais por um produto inovador e de qualidade. No setor têxtil e no turismo - só para citar alguns exemplos - aconteceu a mesma coisa. O jornalismo não é diferente. A única forma de salvar esta indústria e reconquistar a confiança dos consumidores é investindo, inovando e, sobretudo, fazendo bom jornalismo. O jornalismo não precisa de ser reinventado - precisa de ser bom e que as novas "montras" paguem pelo produto que vendem.

E não adianta sermos hipócritas. Sempre houve bom e mau jornalismo, mas, antes da era digital, os consumidores não tinham alternativas. Se quisessem estar informados, iam ao quiosque comprar o jornal, ligavam a rádio ou a televisão e consumiam o que lhes pusessem à frente. Agora, a concorrência é muito maior, muito mais desleal e, sobretudo, muito mais distorcida e desregulada. E um dos piores erros que as empresas de comunicação social cometeram foi o de aceitarem fazer um pacto com o diabo - quando decidiram facultar os seus conteúdos à borla às grandes plataformas ou, pior ainda, quando decidiram jogar este jogo do engagement, que as deixou completamente à mercê do Facebook e do Google.

É vê-los agora, os diretores digitais, administradores providenciais e outros que tais, que andaram todos a tecer loas a estas plataformas - sem que, na realidade, percebessem alguma coisa do seu funcionamento - e a convencer as administrações a assentar a estratégia digital das empresas de comunicação social na dependência de um "título apelativo", a escrever só dois ou três parágrafos por texto e a roubar conteúdos uns aos outros. Estão todos aflitos agora, porque o Facebook os pôs de "castigo", porque não compreendem como é que o algoritmo do Google mudou, assim de repente, ou porque é que um vídeo feito com telemóvel por um puto de 15 anos tem mais audiência e, sobretudo, mais rentabilidade que aqueles feitos pelos reconvertidos em jornalistas multiplataforma.

Perante a era do digital, a maior parte das empresas de comunicação social optou, deliberadamente, por não ter uma estratégia própria, por seguir um caminho aparentemente mais fácil, mas de muito curto prazo. Na forma como distribui os conteúdos, mas também na forma como os produz: com estagiários mal pagos - se forem de borla, melhor ainda -, que dão menos trabalho, menos despesa e, com sorte, ainda agradecem a "oportunidade".

Os resultados estão aí, à vista de todos, e a culpa, no final, é, claro, dos jornalistas, que deviam beijar o chão dos que lhes pagam o ordenado. A culpa, afinal, nunca é dos gestores ou dos acionistas "analógicos", que não tiveram visão, a arte e o engenho para estarem um passo à frente. Aqueles que se recusam a aceitar que o jornalismo só é um bom produto se for independente. Incómodo. Rigoroso. Feito por gente que pensa pela sua própria cabeça. Que não trabalha numa linha de montagem. A culpa nunca é dos que não entendem que as marcas valem pela sua diferença, que só há jornalismo feito por jornalistas e que tudo o resto é propaganda barata que o mercado não vai querer comprar.

Por fim, os jornalistas. Uma classe que nunca, em 45 anos de democracia, se conseguiu unir na defesa do mais elementar: o jornalismo. Que nunca se pôs de acordo sobre a necessidade de uma Ordem que ponha ordem, de uma vez por todas, na atribuição da carteira de jornalista, que puna os que não cumprem as regras mais básicas do código deontológico da profissão, que tenha uma palavra a dizer e peso político nas decisões estruturais - ou na falta delas - para o setor. Uma classe onde, tantas vezes, nos damos à morte, em comentários idiotas insuflados pelo ego que só incendeiam ainda mais a fogueira onde todos ardemos nas redes sociais.

Esta reflexão nunca foi feita a sério. E enquanto isso não acontecer, este setor vai continuar a definhar, todos os dias. É um lugar comum, mas é real: é a democracia que perde. E não adianta culpar os consumidores. Se é verdade que o poder político tem a obrigação de agir e de regular de vez este mercado cada vez mais anárquico - e não o faz por medo -, não é menos verdade que as empresas de comunicação social têm também o dever de se sentarem à mesa e discutir tudo isto muito a sério. Tal como os jornalistas - os que ainda acreditam na profissão e no valor que ela tem, pelo menos -, não podem ficar de fora deste debate.

A esperança que nos deve alimentar a todos - jornalistas, profissionais do meio e consumidores -, é perceber que, em Portugal, apesar da sangria nas redações nos últimos anos, ainda há gente empenhada e comprometida, que todos os dias se esforça por manter este barco à tona. Acreditem: há profissionais incríveis nas redações deste país, gente que não cede naquela que é a sua principal missão - levar aos consumidores a melhor informação possível. E, apesar de tudo, ainda há - poucos, mas há - gestores nos media que não andam à procura de poder e que inovam, investem, criam novos projetos e têm uma visão. São cada vez menos? São. Mas é por isso que se torna ainda mais urgente salvar um setor sem o qual não há democracia.

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