Joe Berardo entrou-nos em casa para gozar com a nossa cara. A inconveniência, a sobranceria, a desfaçatez com que respondeu aos deputados dizem tudo sobre uma personagem que vive convencida de que o dinheiro não compra apenas um jardim de Budas, também pode comprar o estatuto de inimputável..Joe Berardo é o típico jogador que atua nos espaços vazios. Dos interesses de terceiros, da letra da lei e, sobretudo, da legitimidade. Foi assim que ganhou o protagonismo na guerra pelo poder no BCP, quando explorou, para lá do limite do razoável, o interesse de Paulo Teixeira Pinto em acabar de vez com Jardim Gonçalves. Foi assim que conseguiu usar a Caixa Geral de Depósitos para travar essa mesma guerra, aproveitando a mão por detrás do arbusto, que manipulava o banco do Estado e que tão cara nos está a sair. Foi assim que atuou, no limite da legitimidade, quando usou a coleção Berardo para fazer chantagens sucessivas sobre o Estado português, ao mesmo tempo que se apresentava nas televisões como o grande mecenas que anunciava entradas gratuitas para ver a sua coleção pessoal. E foi essa a grande lição que nos deixou a semana passada no Parlamento: quando se tem dinheiro para pagar a bons advogados, tudo é possível em Portugal. Até ficar a dever e sair impune..Já muitos pensaram e fizeram o mesmo. Talvez fossem mais polidos, talvez não tivessem este jeito gingão, mas Berardo está longe de ser o primeiro a insultar-nos a inteligência e a sair a rir-se no final. Uns no Parlamento, outros na comunicação social, outros ainda em tribunal, mas o que não falta neste país são poderosos que viram o seu poder secar e de quem hoje nos envergonhamos por um dia lhes termos dado o crédito que não mereciam..Talvez fosse útil Joe Berardo pôr os olhos nesses exemplos. Até porque conhece-os, ou não tivessem sido muitos desses "poderosos" a ajudar a construir a figura que Berardo é hoje..Dos que ajudaram Berardo a ser o que ele é hoje, felizmente, sobram poucos na nossa vida pública. Os que não estão presos - ou a contas com a justiça - evaporaram-se com a sua credibilidade de grandes banqueiros, empresários ou políticos. Todos eles eram figuras proeminentes de um Portugal que ouvia os seus sábios conselhos sobre o país, mas não estranhava as nomeações em circuito fechado para os mais altos quadros de bancos e empresas portugueses. Como também não estranhavam a fortuna do empresário madeirense, que terá enriquecido na África do Sul - sem ninguém saber muito bem como - e que conseguia empréstimos bancários com a mesma facilidade com que cada um de nós vai à padaria comprar pão..Mas, se muitas destas pessoas desapareceram do radar ou continuam a aparecer na imprensa portuguesa pelos piores motivos, outras continuam de pé, também elas a jogar no espaço vazio. No passado, como no presente. É o caso de Carlos Costa, o governador do Banco de Portugal que, enquanto administrador da Caixa Geral de Depósitos, nunca viu, estranhou ou questionou quem quer que fosse sobre o fartar vilanagem que estava a ser feito ao banco do Estado. Ou Vítor Constâncio, o regulador à época, que agora argumenta que estava de mãos algemadas pela lei e cuja memória já não é o que era, mas que teve como prémio, por ter sido o responsável pela supervisão de um dos períodos mais negros do setor financeiro português, o cargo de vice-governador do Banco Central Europeu..Berardo sobreviveu a tudo e todos. Mas, se hoje continua a rir-se na nossa cara, isso não se deve apenas aos que, no passado, o suportaram, em nome de interesses que, talvez, nunca venhamos a conhecer. Se hoje Joe Berardo pode ir à casa da democracia enxovalhar-nos, é porque tem pela frente um Estado que continua a ser demasiado fraco com os fortes e forte com os fracos. Um Estado que não perdoa um cêntimo ao comum dos mortais, que penhora, que cria listas negras de devedores, mas que permite que um empresário entre no Parlamento e tenha a desfaçatez de nos cuspir na cara..A julgar pela postura que teve no Parlamento, acho que o comendador/empresário/investidor/mecenas e homem sem posses estará pouco preocupado com a imagem pública que o país tem dele. O dinheiro tem este poder: pode não servir para pagar a quem devemos, mas tem a capacidade de nos cegar. Para já, o dinheiro que Berardo não devolve à Caixa Geral de Depósitos e a outros bancos vai chegando para pagar aos advogados que o ajudam a manter-se ativo, nos espaços vazios da lei. Não sei durante quanto tempo Berardo vai poder continuar a rir, nem quem será o último a fazê-lo. Eu não serei, seguramente. Porque não é este o país com 45 anos de democracia que imaginei.