Centeno e a tragédia grega
Os 30 graus que marcam os termómetros em Atenas não fazem vacilar nem escorrer uma gota de suor ao porteiro de um dos mais conhecidos hotéis da praça Sintagma, mesmo em frente ao parlamento grego. A conversa por estes dias - nos últimos anos, na verdade - é mono-temática. A Grécia prepara-se para ir a votos, num referendo onde o povo é chamado a dizer se aceita ou não mais um pacote de austeridade. Mais um de muitos. Tantos que os gregos já perderam a conta. Em 2015, estávamos no quinto ano de medidas duras - e quase todas inconsequentes - impostas pelos credores. O Governo, agora liderado pelo Syriza de Alexis Tsipras e que tinha nas finanças a rockstar Varoufakis, decidiu colocar nas mãos do povo a decisão: querem ser chibatados mais um bocadinho ou virar as costas a esta União Europeia que tem sido o nosso carrasco dos últimos anos?
A pergunta tinha uma resposta fácil para o porteiro daquele hotel: "O meu pai morreu aqui, nesta praça, a lutar contra a ditadura. Se eu tiver que voltar a pegar numa arma e a derramar o meu sangue pelo meu país, não hesito nem por um momento. Já chega!"
Não foi preciso pegar em armas para ver sangue derramado um pouco por toda a Grécia. O desemprego e a pobreza extrema para onde foram atirados milhões de gregos, entre 2010 e 2017, foram suficientemente sanguinários para explicar uma guerra que, na verdade, estava perdida mesmo antes de começar. Em oito anos (de 2009 a 2017), as famílias gregas perderam 40% da sua riqueza. O Produto Interno Bruto caiu 14% (2010-2017). Sim, 14%. Só mais um dado que expressa bem esta tragédia grega: a taxa de desemprego ronda hoje os 20% da população ativa, tendo atingido os 30% no pico da crise, em 2013.
Tudo o que podia correr mal, neste país, correu ainda pior. Como se não bastasse a Grécia ter sido governada durante anos por políticos, no mínimo, pouco sérios, com a troika chegaram os teóricos do FMI, da Comissão Europeia e do Banco Central Europeu. Quais cientistas chanfrados, cheios de teses e de verdades absolutas, meteram um país inteiro num tubo de ensaio e foram fazendo experiências, como se nesse país não vivessem pessoas. Isto já para não falar na política do castigo ao menino malcomportado, dos que, como a Alemanha, verdadeiramente sempre mandaram na Europa, incapazes que são de reconhecer na história as lições que a história tem para lhes dar. E o Syriza. O partido que se assumiu como o grande libertador do povo grego - e chegou ao poder com essa premissa - mas que acabou por sucumbir aos burocratas, tecnocratas e, sobretudo, aos credores.
Era difícil escrever um guião mais trágico para esta história que dura há sete anos. E agora que a troika partiu de Atenas, há quem ouse celebrar. Como se o rasto de destruição que ficou para trás não fosse ainda suficientemente grande. Como se um povo se tratasse desta forma e lhe pudéssemos virar as costas sem um pedido de desculpa.
Mário Centeno, o presidente do Eurogrupo, é um dos que mais festeja o fim do programa de assistência financeira na Grécia. Num enorme esforço de propaganda, Centeno enumera os sinais positivos que a economia grega começa a dar, mesmo que grande parte da população não os sinta. É assim uma espécie de reedição da frase de Luís Montenegro em 2014, quando disse que o "Portugal está melhor, os portugueses é que ainda não". O mesmo Centeno que era implacável com as políticas da troika em Portugal, esquece-se agora de dizer que a troika deixou na Grécia uma dívida pública de 180% do PIB. Um desemprego de 20%. E 30% da população em risco de pobreza.
"Há lições a tirar?", pergunta Centeno. Há, mas tudo isso é passado, faz parte da história, não vem agora ao caso. O pior é que vem. Porque se há evidência nesta Europa pós crise financeira, é que o velho continente pouco ou nada aprendeu com o passado recente.
À primeira oportunidade, os bancos voltaram ao business as usual, as agências de rating, tão criticadas durante a crise, voltaram a ser a Meca dos mercados e os mercados, esses, continuam a ganhar dinheiro, como sempre ganharam, com ou sem crise, com mais ou menos riqueza criada, com mais ou menos gente na pobreza. O crescimento europeu continua longe de impressionar, sobretudo se olharmos para as dívidas públicas - e Portugal tem uma bem elevada - que continuam sem solução à vista.
Centeno, o presidente do Eurogrupo, nada tem a dizer sobre isto. Mas Centeno, o economista que ajudou a construir o programa do PS, tinha várias teorias sobre a economia europeia e sobre o que de errado estava a ser feito. Era aliás, todos se lembrarão, um crítico feroz das políticas impostas pela troika, em Portugal como na Grécia. E um crítico ainda maior da forma como a Europa assobiava para o lado quando alguém tentava discutir o problema da dívida pública. Mas isso foi antes. É história. Faz parte do passado. Agora, Centeno é o presidente do Eurogrupo - e parece bastante satisfeito com o trabalho que a troika fez na Grécia.