Ida e volta a Timor com muitas histórias africanas

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É um episódio histórico de que não tinha ouvido falar, ou antes, de que não me recordo de ter ouvido falar. Aparece agora contado por uma voz inesperada. Mariazinha, irmã de Zeca Afonso, passou parte da infância num campo de concentração japonês em Timor, durante a II Guerra Mundial. Para ela, é um período cheio de significados, embora tenha sido calado durante todos estes anos. Ali sofreu as maiores dificuldades, ali deixou de ser criança e aprendeu a resolver problemas que nem um adulto deveria ter de encarar. Ali fez um corte num pé que deixou uma cicatriz, e ali foi tratada com cuidado por um dos carcereiros, um médico japonês.

É isto e muito mais o que conta o documentário de Luís Filipe Rocha, Rosas de Ermera, um regresso a esse momento, uma menina que agora é avó e aceitou rever os lugares onde foi solitária e livre, solitária e cativa. Como quando conta os dias de mercado: os prisioneiros à espera de que os guardas escolham os melhores alimentos, eles próprios avaliando o que poderão depois obter. A corrida aos bens preciosos, uma fruta ou uma hortaliça em melhor estado.

Luís Filipe, amigo e cúmplice da família de Mariazinha, homem de muitas aventuras antes de encontrar poiso discreto perto da Ericeira, deixa de lado a ficção para contar, com poucos meios, uma história verdadeira. Parte de dois relatos, o de João, o irmão mas velho de Zeca, e o de Mariazinha. Felizes e despreocupados os primeiros tempos em Moçambique, onde regressaram depois dos tempos de separação: a mais nova seguiu os pais pelo Índico para Timor, enquanto os rapazes dobravam o cabo da Boa Esperança e subiam o Atlântico em direção a Coimbra.

É uma história de descobertas, e talvez a primeira e a mais importante seja a de cada um sobre como foi moldado pelas circunstâncias . O realizador torna-se perguntador, em busca de uma realidade que supera qualquer ficção.

Aprender desta maneira histórias da História é um luxo. Como acontece com o último volume da trilogia de Mia Couto sobre Gungunhana, Os Bebedores de Horizontes. Lá está a história de Moçambique, de vários moçambiques que se cruzam naqueles anos de 1895 e 1896, e de Portugal, ou dos vários portugais do fim da monarquia e da luta pela República.

Nunca mais passarei na Estrada das Laranjeiras sem pensar no suicídio de Mouzinho de Albuquerque, cujo heroísmo tão louvado foi posto em causa por quem com ele esteve no mato. E aqui sobressai o nome de Álvaro Andrea, militar condecorado e herói republicano que assinou um relatório sobre as irregularidades da ação de Mouzinho. Ler sobre ele recordou-me o irlandês Roger Casement, o protagonista de O Sonho do Celta, de Mario Vargas Llosa. Hoje os diários de Casement, talvez com muita imaginação à mistura, estão na Biblioteca Nacional em Dublin. A primeira missão que teve em África, no Congo, começou precisamente em 1895 e levou-o a escrever um relatório explosivo sobre os abusos no tratamento aos africanos por parte do poder dos belgas. Vargas Llosa diz mesmo que foi ele que deu as primeiras informações a Joseph Conrad, que veio a escrever o Coração das Trevas. E como estas coisas da criação são como as cerejas, deste livro nasceu Apocalipse Now, a grande obra de Francis Ford Coppola que o situa no Camboja profundo e dá a Marlon Brando um dos monólogos mais desesperados de sempre.

Irrequieto, Casement foi mais tarde colocado no Brasil, na Amazónia, e aí escreveu sobre o tratamento indigno dos trabalhadores de borracha, no território de fronteira com o Peru. De herói britânico passou a ser tratado como traidor quando se entregou ao sonho de celta - a independência da Irlanda.

Muitas histórias podem sair de um novelo como este. E isso mesmo está na vida e na morte de Gungunhana que, dos livros de história e de ficção, vai passar para o teatro, pelas mãos de O Bando. Tal como o Teatro Griot se prepara para levar para o palco a Rainha Ginga, de Angola. Malhas que o império tece: Zia Soares, atriz deste grupo que leu excertos do livro de Mia Couto na sessão de lançamento, nasceu no Bié, filha de um deportado político timorense. O pai sabia, imagino, a que cheiravam as rosas de Ermera.

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