A mulher que caiu nos braços de Paul Newman saiu de cena
Ada Lovelace é hoje reconhecida como a primeira programadora de computadores. A vida dela foi breve, pois morreu aos 36 anos, em 1852, de cancro do útero. Contemporânea de Charles Dickens, Allan Poe e Kierkegaard, ela era filha do poeta George Gordon Byron, ou, como ficou conhecido, Lord Byron, e de Anne Isabella Milbanke, uma mulher com enorme curiosidade pela matemática que convidou grandes mestres para ensinarem a filha.
A biografia de Ada é conhecida, há mesmo em cada outubro o Dia Ada Lovelace a assinalar as mulheres que se destacaram na ciência, na tecnologia, na engenharia e na matemática, mas foi só nesta semana que passou a estar incluída na lista de obituários do The New York Times, juntamente com mais 14 mulheres cujas mortes não tinham sido valorizadas nas respetivas épocas. Entre elas, a escritora Sylvia Plath (1932--1963), a fotógrafa Diane Arbus (1923-1971), a jornalista e lutadora pelos direitos civis Ida B. Wells (1862-1931), a escritora Charlotte Brontë (1816-1855).
O início do mês de março, com o dia 8 a marcar a agenda, traz sempre os direitos das mulheres ao primeiro plano, e podemos dizer que em 2018 foram as grandes manifestações em 122 cidades espanholas o lado mais significativo e poderoso. Ficam para a história, disseram as organizadoras. Por cá, ficámos a saber da disparidade de salários entre homens e mulheres que desempenham idêntico trabalho - 16%, ainda mais elevado dos que os 13% registados em Espanha. Pudemos saber mais estatísticas e declarações e mais histórias, como as das cinco primeiras mulheres presidentes de câmara eleitas em Portugal em 1976, numa bela reportagem de Bárbara Baldaia na TSF. Antes que alguém pergunte, sim, com certeza que acho que é preciso assinalar o Dia da Mulher, a igualdade está longe.
Claro que não está tão afastada como no tempo de Ada Lovelace, de quem se escreveu então que tinha "uma inteligência completamente masculina em termos de solidez, domínio e firmeza", e que combinava isso "com o mais refinado carácter feminino", até porque aliava o gosto pela ciência ao gosto pela arte. Foi educada pela mãe, que se separara do pai e que veio a morrer cedo, e correspondia-se com grandes especialistas. Foi assim que em 1843 defendeu, num documento histórico, aquele que é o conceito central da era digital.
Com imagens das manifestações em Espanha, na quinta-feira, fui despedir-me da Gabriela Cerqueira. Como uma vez escreveu o Tiago Bartolomeu Costa, ela era a pessoa que nos bastidores construía espetáculos, festivais, redes de criadores. Trabalhou em publicidade, depois em produção de cinema, e teatro, foi consultora do CCB. Quem com ela conviveu recorda que era a primeira a acordar, a primeira a chegar, a primeira a ficar pronta para o que quer que fosse. Era assim no trabalho e na vida, com uma energia e uma graça incomparáveis.
Não sei como isto aconteceu, mas conseguiu que nos despedíssemos dela no Dia da Mulher. Ela levava a questão dos direitos das mulheres muito a sério, uma coisa quotidiana, prática, vivida, natural. Tinha bebido do pai princípios que lhe ficaram para sempre, como esses mesmos da igualdade e da autonomia e outros mais - a escolha de uma vida saudável, a preocupação com os alimentos, a inquebrantável ligação aos outros.
Fazia tudo isto sempre impecável e linda porque isso fazia parte da maneira de estar.
Conheci-a no Festival dos 100 Dias que antecedeu a Expo"98. A equipa tinha quase só mulheres mas nunca lhe perguntei se tinha escolhido as pessoas com esse pressuposto. Pensando nisso acho que não, que era ela a ser a Gabriela, a escolher as pessoas que achava mais adequadas e com quem trabalhava melhor em equipa.
É claro que ela vai ficar na nossa memória também como aquela que ganhou o aplauso das mulheres que a viram no Hotel Algonquin, em Nova Iorque, a tropeçar e a ser apanhada no ar por Paul Newman. Já era invejável ter feito isso, mas conseguiu logo de seguida esbarrar com Matt Dillon à saída do hotel. Quem assistiu ao episódio foi Bruno de Almeida, o cineasta filho da maior amiga da Gabriela, a galerista Maria Nobre Franco, que tal como ela se foi embora com a elegância de quem sai de cena e deixa saudades.