Um cemitério de boas ideias

A premissa era superinteressante e encaixava-se bem nesta nova era dourada da televisão, que abriu as portas a narrativas diversificadas e com pontos de vista de todas as cores. O canal Showtime, que trouxe até nós Shameless e Homeland, ia apostar numa série sobre um ambicioso comediante afro-americano a tentar partir pedra em Hollywood e atingir o estrelato no cinema. Só o título já dava para perceber que ia ser provocador: White Famous. O nível de fama em que um afro-americano é popular entre os espectadores brancos, como Denzel Washington ou Will Smith.

Para apimentar mais a coisa, a história era vagamente baseada na experiência de Jamie Foxx na cidade dos anjos, que não só produzia a série como ainda aparecia a fazer dele mesmo nalguns episódios. O protagonista era Floyd Mooney, interpretado por Jay Pharoah, que o público conhecia como o Obama do Saturday Night Live. Esfreguei as mãos quando recebi os screeners da série antes da entrevista com Pharoah e preparei-me para umas horas de comédia que teriam, esperava, uns toques frontais de racismo e privilégio em Hollywood. Antes dos primeiros dez minutos do piloto, já estava de boca aberta. Só que pelos motivos contrários.

Não dá para compreender como é que eles conseguiram transformar uma boa ideia numa amálgama de más piadas e histórias bizarras que não fazem sentido nenhum.

Vamos começar por algo que se torna óbvio desde o princípio: as mulheres nesta série são tratadas como acessórios, que ou ficam bem na cama de Floyd Mooney, ou são agentes ninfomaníacas que andam atrás dele, ou a ex-namorada que ele não quer que ande com mais ninguém - enquanto o artista anda pela cidade armado em engatatão.

Logo nos primeiros minutos do piloto, Floyd enrola-se numa tirada em que defende Bill Cosby, diz que as suas 50 vítimas conhecidas se calhar nem foram violadas e se ele lhes fez alguma coisa então foi bom que as tivesse drogado antes. A sério, White Famous ? No momento em que o escândalo de Harvey Weinstein está a provocar um terramoto em Hollywood?

Há tantas cenas disparatadas que é preciso ir buscar um bloco e tirar notas de cada vez que a história dá uma guinada para território improvável. Uma delas é o facto de Floyd recusar constantemente ofertas para entrar em produções que lhe dariam projeção, porque não quer comprometer a sua integridade. E qual é o ataque fatal à sua integridade? Ter de usar um vestido, como uma mulher. O pedido é tão violento para a masculinidade de Floyd que ele sonha que os seus órgãos genitais foram substituídos por uma vagina. A forma como isto foi escrito e filmado dá a entender que ser mulher é a coisa mais degradante que pode acontecer a alguém - o que talvez explique porque é que as mulheres são retratadas com pouca nuance e características tão unidimensionais.

O que a série não explora, incrivelmente, é a tensão racial que se vive na América neste momento e a diferença de oportunidades que são oferecidas a quem não é loiro de olhos azuis em Hollywood. Aliás, pelo contrário: as oportunidades caem no colo de Floyd Mooney e é ele quem as desperdiça ou diz que não precisa daquilo.

"Floyd não quer saber de Hollywood. Desde que ele consiga tomar conta do seu filho, ele só quer voltar com a Sadie e o Trevor e ser uma família", disse Pharoah na conversa. "Ele não quer fazer isto mas sente que tem de o fazer." A premissa da série não era a luta de um afro--americano que vem de baixo e quer chegar ao topo da indústria? E que oportunidade perdida de tocar em assuntos que estão na ordem do dia. Nem uma única referência direta a Donald Trump, ao renascimento do movimento neonazi, aos protestos de Charlottesville, aos jogadores de futebol ajoelhados. Nada, numa série chamada White Famous que se promoveu com base na questão da raça.

Questionei Pharoah sobre esta incongruência e ele respondeu de forma defensiva, dizendo que a série aborda estes temas. Mas a única referência controversa que consegui descortinar acontece durante uma conversa de Floyd com o filho, que lhe pergunta se deve tocar numa miúda de que gosta assim à primeira. Floyd responde que não, porque esse tipo de atitudes ou põem uma pessoa na cadeia ou na Casa Branca. E é só.

"Há tanta coisa que acontece à porta fechada quando se tem potencial e se está a tentar chegar ao topo", disse Pharoah. Revê-se em Floyd Mooney, mas quer atingir o sucesso sem se rebaixar nem perder a alma, "e sem desistir da minha moral". Qual? Boa pergunta.

É claro que a audiência não é parva. White Famous foi cancelada antes de ter a hipótese de chegar à segunda temporada. Porque não soube explorar uma ideia boa. Porque usou estereótipos do passado com caras diferentes. Porque as pessoas hoje querem ver histórias interessantes, reais, que as façam pensar, com diversidade de representação. Se é para ver comédias puras, vira-se para Man with a Plan ou Super Donuts, também da família CBS, que até têm bastantes ângulos para provocar conversas em família. White Famous é o que acontece quando pegam em fórmulas gastas e lhes passam umas camadas de verniz. Não demora muito até estalarem todas.

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