O monstro precisa de amigos
Os letreiros começaram a surgir no ano passado. "Não fazemos bolos para casamentos gay", avisavam as vitrinas de pastelarias. Em dezembro, um jornalista perguntou à porta-voz Sarah Huckabee Sanders (na foto) se a Casa Branca apoiava este direito dos pasteleiros de recusarem serviço a clientes por não concordarem com o seu comportamento ou com o estilo de vida. Ela disse que sim, claro, porque é um exercício de liberdade religiosa. O Supremo norte-americano confirmou a validade desta posição quando, no início de junho, decidiu a favor de um pasteleiro do Colorado que foi processado por se recusar a fazer um bolo para um casal gay. "Estamos satisfeitos com a decisão do Supremo", afirmou então Sarah Huckabee Sanders.
A porta-voz não demorou muito para clarificar que esta liberdade de recusar serviço só se deve aplicar quando considera que os alvos são merecedores de tratamento discriminatório. É o eterno jogo de hipocrisia sofrida que uma grande fação conservadora joga na política americana. Sarah não achou a mesma piada quando, na sexta-feira, foi convidada a sair do restaurante The Red Hen, na Virgínia, porque parte do pessoal é LGBT e a dona não quis forçá-los a servir alguém que defende a discriminação desta comunidade. Sarah, cujo comportamento ético (e da Casa Branca que representa) não se coaduna com os valores do restaurante, foi para o Twitter qual mártir de uma guerra cultural sem fim à vista.
A dor de Sarah deixou os conservadores mais indignados do que o choro das crianças imigrantes separadas dos pais na fronteira. Dias antes, a porta-voz fora pressionada sobre a política de tolerância zero que levou a este escândalo das crianças postas em jaulas e nunca perdeu a compostura. Nunca deixou de defender a moralidade de tais opções. Que tanto ela como o procurador-geral Jeff Sessions tenham citado a Bíblia para justificar a separação de pais e filhos é demasiado elucidativo sobre o gabarito catastrófico do racismo que está embebido nestas crenças.
Um dos apresentadores do programa preferido do presidente, Fox & Friends, disse-o com todas as palavras: "Goste-se ou não, estas não são as nossas crianças." Os limites da compaixão seguem, portanto, as linhas da fronteira terrestre dos Estados Unidos. Porque Trump "não está a fazer isto às gentes do Idaho ou do Texas", está a fazê-lo a meninos de pele castanha que falam espanhol.
O terror daqueles gritos deveria ser suficiente para deixar qualquer um sem pingo de sangue. E, no entanto, não são só Sarah Sanders, Jeff Sessions e Donald Trump que olham para essas caras ranhosas com a perplexidade de quem não consegue sentir empatia pelos filhos dos "outros". As discussões que se seguiram ao terramoto mediático destas notícias mostraram como há tanta gente que facilmente absolve as autoridades de tratarem bebés e crianças com a dignidade que merecem de acordo com os erros imputados aos pais.
Os argumentos andaram todos à volta do mesmo. Primeiro dizer que a política veio da administração Obama, o que é falso. Depois defender que a culpa é dos pais que optam por entrar ilegalmente em vez de irem para a fila dos pedidos de asilo, que os postos fronteiriços estão a negar a torto e a direito. Por fim, explicar que as autoridades estão de pés e mãos atados no cumprimento da lei, passando completamente ao lado da única questão que interessa: isto não se faz a uma criança. Recusar asilo e entrada a uma família imigrante é prerrogativa de qualquer Estado soberano, mas perseguir criminalmente os pais a ponto de lhes tirar os filhos, sem qualquer plano de reunificação, é uma opção política que diz tudo sobre a hipocrisia da administração "pró-vida" em quem os conservadores religiosos votaram em massa.
A quantidade de pessoas que vi tentarem justificar esta política, usando as crianças como arma de dissuasão aos pedidos de asilo, não foi só assustadora, foi clarificadora. A ideologia de Trump colhe por todo o lado. Exerce fascínio. É uma veneta autoritária que triunfa sobre princípios que tínhamos por comuns, que nos baralha e atordoa. A polémica com o casaco "I really don"t care" da primeira-dama, Melania Trump, só contribuiu para esta vertigem confusa em que já não sabemos o que é real, o que faz sentido e o que pretendem estas pessoas. O monstro muda de nome e às vezes parece avançar sozinho, mas coisa que não lhe falta é um batalhão de amigos.