No limite do Texas
Duas jovens mulheres abraçam-se sentadas numa manta com as cores do arco-íris, simbolizando de forma cromática o orgulho pela sua união. Ao lado, alguém fuma marijuana de forma descontraída. Um grupo avança com um cartaz que diz "Acabem com os tiroteios, não temos medo de vocês." Uma mão-cheia de casais maduros sentam-se em cadeiras de pano com cervejas na mão e madeixas roxas no cabelo a assistir ao concerto de música country que acaba de começar. É que este festival de música não é na liberal Califórnia, onde tudo o que é estranho se tornou normal e tudo o que é progressista se tornou aceite. Este festival é no meio do Texas, o estado que votou em Trump e onde há mais conservadores por metro quadrado do que na sede do partido. A contradição só é surpreendente para quem nunca visitou Austin: a capital do Texas é uma das cidades mais diversas e progressistas onde já pus os pés.
Naturalmente, este ambiente reflete-se de forma profunda no festival de música Austin City Limits, que neste ano está na 16.ª edição. É um dos maiores festivais do mundo, com quase meio milhão de espectadores nos dois fins de semana em que decorre. O formato é semelhante ao icónico Coachella, na Califórnia, mas com quase o dobro de bilhetes vendidos. O Austin City Limits é um dos motivos pelos quais a cidade é considerada a capital mundial da música ao vivo.
Há qualquer coisa única neste festival, e não é só a dimensão, com multidões que se espalham por relvados a perder de vista e palcos tão grandes que todos parecem principais. O ambiente é ao mesmo tempo bizarro, ousado, diverso e familiar. As famílias trazem os seus bebés em carrinhos e a miudagem corre por entre hordas de adolescentes a atirar bolas de futebol americano. Veem-se grupos de pessoas bem mais velhas do que o habitual neste tipo de eventos deitadas em mantas de piquenique, e há até zonas de cadeiras e zonas sem cadeiras - tal é o número de espectadores que planta a cadeira de pano à frente dos palcos. O cheiro a marijuana é intenso por todo o lado, algo que me apanhou de surpresa: a canábis é completamente ilegal no Texas, ao contrário do que acontece na Califórnia e noutros 28 estados, e no parque Zilker, onde decorre o festival, é proibido fumar qualquer tipo de cigarros, tradicionais ou eletrónicos. A segurança é mais ou menos apertada à entrada, com reforço especial por causa do que aconteceu em Las Vegas. Como é que tanta gente entra com canábis mantém-se um mistério, mas dá um certo gozo. É um dedo do meio gigante à legislatura do Texas, tão conservadora e retrógrada. É um sinal de que os ventos de mudança se sentem por dentro da própria máquina. Austin, a capital do Texas, é uma cidade liberal, que votou maioritariamente em Hillary Clinton nas eleições presidenciais. É impossível parar o progresso social, ainda que o sistema tente atirar pedras à engrenagem.
É por isso que o Austin City Limits se torna uma celebração única, que junta estrelas da música country como Asleep at the Wheel a estrelas do rap e do hip-hop, rock e música pop. Neste ano, vi Jay-Z mandar tudo abaixo num concerto eletrizante. Vi a sueca Tove Lo levantar a camisola e expor o peito nu enquanto cantava canções de fazer corar a Madonna, entre Disco Tits e Talking Body. Vi os Red Hot Chili Peppers a fazer uma homenagem a Tom Petty ("Esta canção é para ti, irmão. Não morreste em vão", disse Anthony Kiedis), entre os acordes de Californication e Give it Away. Ouvi os Foster the People dizer que os meios de comunicação social são culpados pela divisão do país, da Fox News à CNN, e que não estamos tão divididos quanto isso (Mark, pensa lá bem nisso). Descobri uns Cut/Copy incríveis, a quem a organização cortou o som às 19.00 para outra homenagem a Petty: paraquedistas caindo sobre o parque ao som de Free Falling. Vi as histórias digitais dos Gorillaz e ouvi os Portugal.The Man, que foram buscar o seu nome ao nosso país, entregar um poderoso Feel it Still. Dei uns passos de dança com Milky Chance e vi os The Killers fechar o festival em apoteose, abrindo com American Girl (obrigada Tom Petty) e partindo tudo em Mr. Brightside e Human.
No ar, um sentimento de desafio e de coragem. Da mulher com a camisa a dizer "Suck it up, buttercup" ao rapaz com Bill Clinton estampado na T-shirt. Das mil bandeiras - incluindo a portuguesa - que ondularam na suave brisa outonal de Austin, onde estão 35 graus. A resiliência contra o medo num fim de semana incrível, bem organizado, com água e autocarros gratuitos, palco para crianças e uma zona de imprensa inigualável. O Austin City Limits é um daqueles acontecimentos a que devíamos ir pelo menos uma vez na vida. Aqui descobri que os limites do Texas são muito mais elásticos do que aquilo que se pensa para lá das botas e chapéus de cowboy.