Insurreição feminina

Se nada for feito, a igualdade de género só acontecerá dentro de cem anos." A voz ecoou no microfone e deixou o auditório em silêncio. "Não sei quanto a vocês, mas eu sou capaz de já não estar cá." Seguiu-se uma explosão de gargalhadas e aplausos, entre o peso da tarefa dantesca que está pela frente e a vontade de arregaçar as mangas. Quem falava era Catherine Gray, a organizadora da conferência Live, Love, Thrive, em West Hollywood e presidente da 360 Karma, uma empresa que tem como missão dar poder às mulheres em Los Angeles.

O ambiente podia ter sido de raiva, pessimismo e alerta com o que está a sair em catadupa nas notícias - caso atrás de caso de assédio sexual e violação em Hollywood, nos media e na política americana. Mas foi precisamente o contrário. O evento sobre mulheres, que esgotou o auditório da biblioteca de West Hollywood (uma das cidades mais progressistas do país), teve uma energia incrível e inspiradora.

Há algo de extraordinário a acontecer na cidade do entretenimento. Nenhuma das revelações que tem vindo a público é novidade na indústria, simplesmente não se falava abertamente sobre isso. Havia medo, havia paranoia, havia vergonha. Oito anos de administração Obama, que deu grandes passos em torno de maior equidade social - desde leis antidiscriminação a diretivas de proteção contra minorias -, teve o efeito perverso de adormecer os movimentos ativistas. Julgou-se que o caminho era em frente e não haveria volta a dar, que as conquistas vinham agora mais facilmente. Viveu-se, à esquerda, a ilusão de que a marcha do progresso social era inexorável.

Do outro lado, o fundamentalismo anti-Obama criou uma narrativa que pode apelidar-se de histérica, criando a sensação entre os conservadores de que a América estava a tornar-se socialista, que o politicamente correto agrilhoava as suas vozes e que mais cedo ou mais tarde viriam tirar-lhes as armas e a Bíblia.

A eleição de Donald Trump, faz esta semana exatamente um ano, foi o grito de resistência a essas forças de globalização e à ameaça percebida ao estilo de vida americano, à família tradicional, aos valores judaico-cristãos, a um statu quo romantizado nos livros de história. Elegeram um homem sem experiência política, com histórico duvidoso nos negócios, uma relação bizarra com o sexo feminino e a promessa de fazer regressar a América ao tal passado grandioso.

O que obtiveram, ao tentar silenciar o feminismo, foi precisamente o contrário. Acordaram a besta que estava escondida em cada mulher que foi apalpada pelo patrão, pressionada a interações indesejadas, negada uma promoção merecida, compensada com salário inferior aos pares, humilhada por colegas mais poderosos, mandada calar quando tentava fazer-se ouvir. O que começou com a Marcha das Mulheres em janeiro continua a ter repercussões, palpáveis e práticas, no epicentro da cultura popular dos Estados Unidos.

É fácil supor que este é um movimento das franjas, ampliado pelo poder das redes sociais. Não é. Havia homens nesta conferência, ali para aprender e para se apresentarem como aliados. Também não foi uma festa de progressistas. Carolyn Olavarria, a primeira mulher latina a liderar um concessionário Honda nos Estados Unidos, falou da necessidade de atingir igualdade salarial, contou-me a sua experiência com discriminação por ser mulher, explicou o que está a fazer para ajudar outras empresárias, e depois revelou que votou em Donald Trump. Não só votou nele, mas continua a apoiá-lo. É conservadora, quer um Estado pequeno, não pretende que os seus impostos sejam usados para pagar programas sociais, apoia Trump. É amiga pessoal de Catherine Gray, a organizadora e apoiante de Hillary Clinton. Olivarria veio de Nova Iorque para Los Angeles para salvar a Honda de Downtown Los Angeles, que estava em maus lençóis, e conseguiu fazer crescer o negócio até o tornar um dos maiores da marca automóvel no país. Falou da hipocrisia dos predadores e da injustiça a que as mulheres ainda são sujeitas sem achar que isso seja incompatível com o apoio a esta administração. Disse-me que chegou a hora da insurreição feminina, à esquerda e à direita.

"As mulheres precisam de apoiar outras mulheres, elevarem-se umas às outras", disse Cat Cora, chef que recebeu o prémio Trailblazer durante a conferência, "para que os predadores não tenham qualquer hipótese". As discussões e os painéis eram intervalados por banda sonora a condizer, começando em Girls just Wanna Have Fun, de Cyndi Lauper, e passando por Stronger, de Kelly Clarkson. O evento de dois dias terminou com as participantes a invadirem o palco ao som da atriz Susan Anton a acompanhar a canção We Are Family (Sister Sledge). "Estou na indústria do entretenimento há 40 anos e trabalhei quase sempre para homens", disse Anton. "Isso está a mudar. Chegou a altura de exigir que mude."

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