Flores entre os rochedos

As câmaras abandonaram o glamour do Madison Square Garden e foram ao encontro da Estátua da Liberdade, iluminada pela noite nova-iorquina, enquanto uma voz feminina lia as palavras que ali estão inscritas desde 1903. "Dá-me os teus cansados, os teus pobres, as tuas massas ansiando por respirar livres" Já não consegui ouvir os primeiros acordes da atuação dos U2, que tocaram Get out of Your Own Way num palco improvisado em frente ao rio Hudson. A visão da Estátua e as palavras importais do soneto The New Colossus fizeram-me rebentar num pranto inesperado, catártico, impossível de conter. A América que eu conheço é esta, a da liberdade, a que ergue a sua tocha ao lado da porta dourada por onde entraram durante séculos todos os sonhos do mundo.

"A todos os países belos cheios de cultura, diversidade e milhares de anos de história: sois lindos, não sois merda." A CBS censurou o palavrão no discurso de Logic, que acabara de cantar a música de prevenção do suicídio 1-800-273-8255 com Alessia Cara. Mas ele continuou. "Digo-vos, tragam-nos os vossos cansados, os vossos pobres, e qualquer imigrante que procura refúgio. Porque juntos podemos construir não apenas um país melhor, mas um mundo que está destinado a ser unido."

A longa noite dos Grammys, tantas vezes acusados de estarem desfasados e terem um processo de nomeações antiquado, foi ela própria uma catarse. As artes sempre espelharam as esperanças e as angústias do seu contexto social; nestes tempos de confusão e mudança, a música é uma arma poderosíssima contra o conformismo e os campos de distorção da realidade.

Não foram apenas as performances carregadas de simbolismo, como a de Kendrick Lamar, com bailarinos vestidos de camuflado e simulando tiroteios, ou de Sting e Shaggy cantando "Oh oh, I"m an alien, I"m a legal alien, I"m an englishman in New York". Foram as histórias pessoais, como a de Camila Cabello, a cantora cubano-americana que saiu das Fifth Harmony e aterrou diretamente no número um da Billboard com o álbum de estreia a solo. "Numa sala cheia de sonhadores da música, lembramo-nos que este país foi construído por sonhadores [dreamers], para sonhadores, perseguindo o sonho americano." Dreamers é o nome não oficial dos jovens que foram trazidos ilegalmente para a América quando eram crianças, que Obama protegeu com o programa DACA e que agora estão em risco de deportação se nada for feito até março.

Foi o discurso feroz da atriz e cantora Janelle Monae, que disse que as mulheres da indústria vêm em paz, mas com convicção. "A todos os que nos querem silenciar, oferecemos duas palavras: acabou-se o tempo [time"s up]. Acabou-se o tempo da desigualdade salarial, da descriminação, do assédio e do abuso de poder." Na passadeira vermelha, homens e mulheres usavam rosas brancas para simbolizar o apoio ao movimento Time"s Up. "Tal como temos o poder de abalar a cultura, também temos o poder de desfazer uma cultura que não nos serve."

As palavras de Monae ressoaram particularmente porque serviram de introdução à atuação de Kesha, a mais real e poderosa da noite. A artista esteve anos sem gravar nova música porque a Sony não a libertou do seu contrato envolvendo o produtor Dr. Luke, a quem acusou de abuso sexual. A voz tremelicava-lhe, o tom fugia-lhe, as mãos descontroladas denunciavam o terramoto interno. Rodeada de nomes grandes da música, de Cyndi Lauper a Andra Day, Kesha exorcizou os seus demónios interpretando Praying de forma simultaneamente frágil e poderosa. Um símbolo interessante dos tempos que vivemos: a comunidade artística uniu-se em torno dela agora que lançou o novo álbum, Rainbow. Mas não se ouvia mais do que o esmagar de folhas secas durante os anos em que Kesha lutava para se libertar do contrato com o alegado abusador, há quatro anos. Era outro mundo. Era outra vida.

Esta que vivemos agora tem uma banda sonora diferente, com vozes diversas e pouco receio de controvérsia. Os Grammys atiraram-se de cabeça para o ativismo político quando puseram celebridades a ler excertos de Fogo e Fúria, o escandaloso livro de Michael Wolff que conta os segredos mais estonteantes do primeiro ano da nova administração na Casa Branca. Era um sketch sobre uma audição para narrar o livro em áudio. John Legend descreveu a parte em que Donald Trump não lê nada e corta as reuniões a meio porque fica aborrecido. Cher leu a explicação para o penteado laranja do presidente. Snoop Dogg pegou na parte em que Trump detestou a sua própria tomada de posse porque não apareceram celebridades. Cardi B quase se engasgava a ler que o presidente vai para a cama às 18.30 com um cheeseburger. "Porque é que estou a ler esta porcaria? Não posso crer. É mesmo assim que ele vive a sua vida?" A última audição deixou a audiência em bicos dos pés. A cara estava tapada, mas a voz era inconfundível. Hillary Clinton leu as famosas linhas em que Wolff revela que Trump tem medo de ser envenenado e é por isso que gosta de comer McDonald"s.

Bem jogado, Grammys. Há poucas coisas que irritam tanto Donald Trump como celebridades a fazer pouco dele - e uma delas é ver Hillary Clinton metida no meio da galhofa. A música, tal como o cinema e a comédia, não é apenas um escape. É uma cura. É a flor, tal como as rosas brancas desta noite, que nasce por entre os rochedos no meio do deserto.

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