Dezoito anos de distância

A menina seguia de braços levantados, segurando um cartaz verde com o símbolo da paz desenhado e mensagens escritas à mão em várias cores. "Dentro de dez anos eu vou votar", dizia uma delas, e perguntei-me se ela teria noção do significado dessa frase. À sua frente, três rapazes com 7 ou 8 anos gritavam palavras de ordem num cântico entusiasmado: "Não à NRA, não às armas nos EUA." Mães levavam filhos ao colo e cartazes na mão. Pais carregavam crianças às costas. Adolescentes marchavam em grupos bem coordenados, com T-shirts iguais, levantando os punhos a cada invetiva de alguém com altifalante.

A Marcha pelas Nossas Vidas foi a maior manifestação antiarmas das últimas décadas nos Estados Unidos. Levou 800 mil pessoas a Washington, D.C., cem mil a Nova Iorque e mais de 50 mil a Los Angeles, e foi protagonizada pela geração dos miúdos que cresceram a fazer simulações de tiroteio. Aos 6 anos, antes de entrarem na escola, as crianças americanas já sabem o que fazer no caso de um assaltante armado atacar a sua sala de aula. Enrolados debaixo de mesas, instruídos para não fazerem barulho e respirarem baixinho, os meninos aprendem aquilo que não se ensina em mais nenhum país desenvolvido. É uma vergonha sem tamanho o que se está a fazer a estas crianças. Porque os problemas de saúde mental, as psicopatias e a violência são questões universais, mas tiroteios em massa no mundo ocidental são exclusivamente americanos.

"São estes momentos que nos definem: o que fazemos numa situação difícil", declarou a comediante Amy Schumer no pódio da marcha em Los Angeles, vestida de verde-tropa, deixando transparecer na voz uma indignação profunda. "Vocês estão a matar crianças", disse, dirigindo-se à National Rifle Association (NRA), que é uma das organizações de lóbi mais poderosas do país e paga milhões de dólares às campanhas dos políticos para que impeçam restrições à venda de armas. "Ouçam isto, políticos: podem fazer um bocadinho menos dinheiro e serem capazes de se olharem ao espelho sem terem sangue nas mãos."

Nesta marcha, que encheu a Baixa de Los Angeles, não houve mensagens partidárias. Elas estão implícitas, é verdade, porque a Segunda Emenda foi apropriada pelo partido Republicano como um direito sagrado que se sobrepõe a todos os outros. No entanto, esta geração de jovens, liderados pelos sobreviventes do tiroteio de Parkland, Florida, a 14 de fevereiro, não têm legados partidários. Na verdade, culpam-nos a todos: aos adultos que os transformaram em carneiros sacrificiais pela incapacidade de agirem mesmo na face de repetidas tragédias.

As coisas parecem diferentes, desta vez, mas também o pareciam há 19 anos, quando aconteceu o massacre de Columbine, muitas vezes referido como um momento seminal. Não foi. No ano anterior, dois miúdos de 11 e 12 anos mataram quatro colegas e feriram dez numa escola preparatória em Jonesboro, Arkansas; duas décadas antes, em 1979, Brenda Spencer abatera a tiro dois adultos e ferira oito crianças numa escola primária. Quatro meses depois de Columbine, um supremacista branco abriu fogo sobre crianças num centro judaico em Los Angeles.

Foi esta sequência de eventos que levou à Marcha de Um Milhão de Mães, a 14 de maio de 2000. Um momento gigantesco, com 750 mil pessoas a marchar na capital dos Estados Unidos e centenas de milhares de pessoas noutras cidades. Rosie O"Donnell chamara-lhe "o nascimento de um movimento." E o que aconteceu a seguir foi nada. O fogo da marcha deixou-se morrer. No final desse ano, George W. Bush ganhou as eleições presidenciais apoiado pela NRA, abrindo uma nova era de domínio político da organização pró-armas.

Ouvir os discursos feitos há 18 anos em Washington, DC é quase arrepiante. As palavras de ordem são outras, mas o sentimento é o mesmo. O problema é o mesmo. Desta vez parece diferente porque são adolescentes, não são mães; são jovens que sobreviveram à tragédia, munidos de ferramentas que não existiam antes, dispostos a galvanizar multidões de outros jovens. O grande foco destas marchas que aconteceram no país foi o pré-registo de eleitores, porque votar não é a primeira coisa de que a malta se lembra assim que faz 18 anos. Nas eleições intercalares deste ano, muitos prometeram usar o seu direito para expulsar do poder os políticos que recebem dinheiro da NRA e se recusam a passar legislação para restringir o acesso a armas de assalto sem treino ou revisão de cadastro. "Basta!" e "Nunca Mais" foram os gritos mais ouvidos, saídos de bocas que ainda não tinham nascido quando a Marcha de Um Milhão de Mães saiu às ruas. Talvez não terem memória histórica seja bom para eles. Porque seguirão em frente sem receios e sem esmorecer, acreditando que têm o poder de mudar o curso da história.

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