Chama-me pelo teu nome
De quando em vez, aparecem obras de arte que desestabilizam as ideias que temos e fazem olhar para as coisas por baixo de um manto de confusão. Call Me by Your Name, o novo filme de Luca Guadagnino sobre uma paixão homossexual assolapada, é uma dessas pedradas no charco.
É um problema, este de lançar sobre a realidade dos outros noções fechadas e absolutas, sem abrir brechas por onde outras luzes possam entrar. Numa altura em que o drama do assédio sexual em Hollywood se agudiza e permeia todas as conversas, todas as perguntas, todos os encontros, aparece um filme que é tão belo quanto controverso. Não por representar uma paixão homossexual, que desse ponto passámos há muito; mas porque mostra uma relação entre um jovem de 17 anos e um homem mais velho. À luz do que tem sido revelado sobre o assédio de homens poderosos a figuras mais frágeis e jovens - com Kevin Spacey à cabeça e o candidato republicado ao senado Roy Moore logo a seguir -, o filme navega em águas turbulentas. O mais perturbador é isto: a história é tão bela e comovente que quase parece um sacrilégio questionar a sua moralidade ou as idades dos intervenientes.
O filme Call Me by Your Name baseia-se num livro de André Aciman, publicado há precisamente dez anos. Ao ler o romance, cada um imaginará de formas diferentes quem são estes amantes. Oliver é um académico de 24 anos que se envolve romanticamente com Elio Perlman, de 17, cuja inteligência e maturidade são desarmantes. Mas no filme, as diferenças físicas são tão óbvias que é impossível não sentir um desconforto constante e perguntar, muito baixinho, se isto não está na fronteira do proibido.
É uma questão de casting. Oliver é interpretado por Armie Hammer, de 31 anos, e Elio sai da pele de Timothée Chalamet, de 21, mas que parece ainda mais novo do que a personagem. A diferença de idades é muito mais óbvia no ecrã do que no papel, e é isso que levanta o sobrolho.
Na conversa com os atores e o realizador que se seguiu à apresentação do filme, em Los Angeles, ninguém tocou neste desconforto. Falou-se antes da beleza monumental da história e da forma incrível como ela é contada.
"É uma das histórias humanas mais belas que já li na vida", disse Armie Hammer, que não consegue fugir à presença imponente da sua figura física - 1,96 m, louro, olhos azuis, figura de Adónis. O jovem Timothée Chalamet falou de Armie como um irmão para a vida, e quase provoca um sentimento de vergonha pelas dúvidas que se levantam interiormente.
"A ideia não era ser casual, mas ser credível", disse. "É uma dádiva." O realizador, Luca Guadagnino, consegue acordar todos os sentidos com este filme. Sente-se o calor do sol nas tardes preguiçosas de Crema, uma pequena localidade no Norte de Itália, onde o romance acontece. Sente--se o aroma dos pêssegos que Elio devora. A viagem desconfortável que se faz ao longo de duas horas espatifa-se num monólogo final interpretado por Michael Stuhlbarg, um monstro do teatro, que entra na pele do pai de Elio. Neste monólogo, Mr. Perlman diz ao filho que sabe que se passou algo entre ele e o académico mais velho; ao invés de o questionar, sublima-o. Porque ser consumido por uma paixão é algo mágico, que nem todos têm a oportunidade de viver.
"Amor é amor é amor é amor", disse Michael, provocando uma ovação na audiência. "Temos sorte de estar vivos. E sorte de nos termos uns aos outros, de viver as coisas de forma profunda quando podemos. Tive a oportunidade de interpretar um homem que ama o filho e está presente para ele, que ouve, tem compaixão." Resolvemos, naquele momento, revisitar todas estas ideias e preconceitos sobre o que está certo e errado nas relações dos outros. Mas tal não impede uma conversa sobre o que é consentimento, poder e desigualdade numa relação entre um adulto e alguém que está à beira da idade que a sociedade considera adulta - ainda que em Itália, nos anos oitenta (a ação ocorre em 1983), a idade do consentimento fosse 14 anos.
"É um filme familiar, em que podemos perceber os laços universais que unem as pessoas e as tornam um núcleo, como uma família", arrisca o realizador Luca Guadagnino. Por uma vez, este não é um filme gay centrado na vergonha ou no medo da descoberta. Vai trazer desconforto aos espectadores quando se estrear, nesta semana, e quase aposto que será candidato a nomeações para os Óscares. Irá levar-nos a discussões e descobertas. A arte tem esse poder de empurrar as fronteiras do que consideramos certo e errado, branco e preto, e só por isso já vale a pena.