As mulheres perfeitas
Há uma cena no filme Titanic, de James Cameron, em que Rose olha para uma mãe a ralhar com a filha pequena para que esta tenha as maneiras de uma senhora quando se senta à mesa. A imagem relembra-a de que a vida de uma mulher da alta-sociedade naquele ano de 1912 estava definida desde o início e inspira-a a rebelar-se. Mais de cem anos passaram; e com todas as conquistas de direitos, há uma coisa que parece não ter mudado.
"As nossas meninas ainda são ensinadas a ser perfeitas e a sonharem com casamentos e com a segurança do príncipe encantado", disse Michelle Obama, ex-primeira-dama dos Estados Unidos, durante a sessão mais esperada do evento United State of Women, em LA. Ela falava precisamente desse espartilho invisível e muitas vezes inconsciente que se põe nas raparigas ainda cedo. A ideia de que devem comportar-se de uma certa maneira, terem certo tipo de aspirações e prepararem-se para o destino que a biologia lhes reservou. "Na minha geração, os sonhos eram muito limitados", lembrou Michelle, contando que quis ser pediatra antes de se tornar advogada. "Temos mais trabalho a fazer. Conseguimos um lugar à mesa, mas ainda estamos demasiado agradecidas por nos podermos sentar nela." Que ideia poderosa: agarramo-nos ao que conquistámos como se tivesse sido um favor, evitando correr riscos para não o perder. Era o que me dizia uma mulher no outro dia numa rede social, que já conseguimos, já lá estamos, se o que queríamos era igualdade então temos de nos comportar como homens. Como se houvesse um preço a pagar por ousarmos pedir o que não nos devia ter sido negado: sejam agradecidas, deixem-se de exigências.
Se há coisa que deve ser clara e foi evidente no United State of Women é que o fenómeno do sexismo não se resume a uma coisa de homens contra mulheres e que o feminismo não se trata de mulheres contra homens. É algo que sabemos de trás para a frente - muitas de nós emulam o comportamento patriarcal que lhes foi endoutrinado. São as primeiras a saltar em cima de outras mulheres que chegam a chefes, as primeiras a julgar o estilo de maternidade das outras, as mais ferozes críticas dos seus corpos, posturas, imagens, sucessos. Quando chegamos a posições competitivas, o standard não é o mesmo. A chefe tem de provar que chegou ali por mérito, o homem só tem de não ser estupidamente medíocre. É um estado de coisas tão aceite que parece transparente. "Gostava de que as raparigas pudessem falhar como os homens e ficarem ok. Porque é frustrante ver muitos homens falharem e mesmo assim vencerem. E nós somos julgadas por padrões de loucos", refletiu Michelle Obama.
Algumas horas antes, escutara uma conversa entre duas participantes que era um espelho desta dicotomia. Uma delas criticava Hillary Clinton por não ser uma líder agradável, com rasgos de populismo, dizendo que uma mulher não podia candidatar-se apenas por ser inteligente e saber fazer as coisas. Uma mulher, para ganhar, tinha de ser tudo; um homem só tinha de ser bom na mensagem mediática.
A pressão que sentimos agora para mudar não começou de um dia para o outro e não é uma causa feminina. É uma causa humana. "Acredito que todos nós ganharemos com isto", disse Ted Bunch, o homem que criou o grupo A Call to Men há 15 anos para alimentar uma "masculinidade respeitadora". "Temos de entender que para isto mudar os homens têm de participar", sublinhou, destacando algo que é importante perceber: "Os homens são socializados para pensar que se algo é a favor das mulheres, então deve ser contra os homens."
Mas isto não é uma subtração, é uma soma. Michelle Obama referia que não se pode sussurrar ideias mágicas às meninas de que podem ser o que quiserem e depois tolerar sexismo nos locais de trabalho. Dizer-lhes que são as princesas e merecem o mundo - só não peçam salário igual por trabalho igual. Esta é a hora de sentir desconforto, porque temos de olhar para o que andámos a fazer. As vezes que nos calámos por receio. As vezes que ajudámos a reforçar um statu quo injusto. A verdadeira meritocracia é aquela em que não se pede mais a uns do que a outros por causa do género e não se culpa o género quando alguém falha. Em que, se não há lugar para nós à mesa, temos espaço para arriscar e construir uma nova.