Afasta de mim esse cálice

O parque de estacionamento está quase vazio. As portas de vidro abrem-se para deixar passar dois ou três clientes, que vêm com sacos de papel castanho nas mãos, cabeças baixas, passo rápido. Passaram dois dias desde a Ação de Graças, uma das mais importantes celebrações da cultura americana, e as primeiras luzes de Natal já iluminam as portadas e os jardins. Mas aqui, numa das lojas estatais de bebidas alcoólicas da cidade de Provo, Utah, o espírito não é natalício. É quase de pecado controlado. No Estado onde domina a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, a religião mórmon influencia grande parte da cultura e da política e isso explica porque é que o consumo de álcool é tão rigidamente controlado. O Utah tem as leis mais duras no que toca aos limites de álcool no sangue dos condutores, o Estado controla as vendas de bebidas espirituosas e os bares e restaurantes que queiram vender álcool têm de se sujeitar a regras onerosas. Os mórmones não consomem álcool, café, chá preto, refrigerantes com cafeína, tabaco e muito menos qualquer tipo de drogas. Como constituem mais de 60% da população do Utah, é impossível escapar aos efeitos do seu modo de vida. É por isso que a loja de bebidas alcoólicas de Provo, onde 95% da população é mórmon, tem contornos especialmente interessantes.

Lá dentro, é possível encontrar todo o tipo de bebidas espirituosas, desde a marca de vodka Tito's, originária de Austin, Texas, até vinhos franceses e cervejas alemãs. As garrafas estão dispostas em estruturas metálicas de várias cores, tão bem organizadas que parece um museu de bebidas alcoólicas. Ao fundo da loja, esbarro com uma secção de vinhos do Porto e Madeira. Há Warre's Ruby a 14,99 dólares, Warre's Warrior a 18, Dow's, Taylor Fladgate a 34 dólares, Graham's a 58,99 e outras preciosidades do vinho made in Portugal. Decido-me por um Noval Black de 2010, que mais tarde receberá elogios rasgados ao jantar.

Não há azáfama, mas todas as caixas estão abertas para escoar a clientela de forma instantânea. Quem entra vai direto ao que pretende e tenta sair o mais rapidamente possível. Explicam-me que há um certo receio de encontrar colegas de trabalho ou vizinhos e ouvir perguntas desconfortáveis, do tipo "Pensei que não bebias". O facto de isto ser um tabu tão grande é uma novidade para alguém que, como eu, passa a maior parte do tempo na Califórnia, onde até o consumo recreativo de marijuana será legal dentro de algumas semanas. Nas reuniões com amigos e familiares, há sempre alguém que nos puxa para um canto e pede para evitarmos referências a álcool e café. A vida religiosa é levada muito a sério. E aqui, em Provo, é vivida ao pé da letra. Há igrejas mórmones por todo o lado e um templo gigantesco, onde só os praticantes da fé podem entrar e onde são realizados os casamentos. Os jovens mórmones, que fazem dois anos de missão noutros estados ou países logo após o liceu ou a faculdade, são encorajados a casarem-se novos. É uma vida muito orientada para a família e a igreja, as atividades ao ar livre, as viagens à Disneyland e o seu entretenimento saneado. Os valores conservadores permeiam a política que comanda o Estado e tornam a vida mais difícil para minorias (por exemplo, LGBT) ou simplesmente quem queira ir emborrachar-se ao domingo enquanto vê um jogo de futebol. As licenças de venda de álcool em bares e restaurantes têm lista de espera e só em maio passado foi modificada a lei que obrigava estes estabelecimentos a terem uma cortina de vidro (a Zion Curtain) para que a zona onde os empregados preparam bebidas não fosse visível.

A setenta quilómetros de Provo, Salt Lake City conta uma história diferente. Tem uma indústria tecnológica em explosão e a rivalizar com Silicon Valley. Na capital do estado, a população mórmon está em minoria (entre 35% e 40%) e existe um grande movimento de contracultura; religião e ciência lado a lado. "Onde houver uma força muito conservadora, surgirá uma rebelião no outro extremo", diz-me um liberal que vive entre Provo e Salt Lake e fala de uma cultura underground muito forte. Tatuagens, piercings, uma cena punk que funciona quase como uma afirmação que se usa na pele - de que eles não são como os "outros" (mórmones).

A influência da religião, além dos efeitos que tem no consumo de substâncias legais não aconselhadas pelos élderes, também se nota noutras estatísticas. O Utah tem das taxas mais baixas de divórcio da nação, cerca de 16% (é de 6% em Provo). Também tem das taxas mais elevadas de consumo de antidepressivos e entre 2013 e 2015 era o sétimo estado com mais mortes por overdose com opioides. Há quem diga que é o melhor sítio para assentar e criar os filhos. Há quem fuja a sete pés por causa dos élderes, os templos e as igrejas. Mas os estereótipos aqui não servem de muito. Da beleza geográfica até à simpatia natural das suas gentes, o Utah é uma surpresa do Oeste americano, entalado entre o Nevada e o Colorado, jogando entre o conservadorismo do passado e as tecnologias do futuro.

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