A bondade de estranhos
Há vinte anos, Maria Teresa andava a apanhar míscaros na floresta quando encontrou uma mala verde com dois bilhetes de avião e dois passaportes americanos. O voo, com destino a Nova Iorque, era para a manhã do dia seguinte. Quem se lembra como era viajar no final dos anos 90 sabe que não havia cá quiosques para imprimir um novo bilhete nem apps no smartphone ou chatbots no Messenger. Não havia iPhones, Google Maps ou e-tickets.
A companhia aérea não lhe atendeu o telefone, mas conseguiu o número de emergência da embaixada dos EUA. Sabe-se lá como, convenceu-os a darem-lhe a morada do diretor do aeroporto de Lisboa, meteu-se no carro e conduziu uma hora para ir lá entregar a mala e salvar o regresso a casa de dois estranhos.
Eram os Zimmerman, assaltados no último dia de férias em Portugal. A história foi contada na semana passada no programa de rádio The Moth pela mulher, Laura, como tributo à portuguesa que os ajudou. A voz tremeu-lhe de emoção ao falar da generosidade desta desconhecida, que fez muito mais do que a sua obrigação. Ouvir falar assim do povo português na rádio americana - Zimmerman chamou-nos "afáveis" - aqueceu-me as entranhas. E também me fez lembrar do que aconteceu comigo há dez anos, em São Francisco, na última vez que vi Steve Jobs vivo.
Horas antes da viagem que me levaria de volta a Portugal, vagueei pela cidade a fazer compras de última hora. Parei na esquina da O"Farrell Street e olhei para uma jovem mulher sem-abrigo, que não parecia pertencer à rua. O que lhe teria acontecido para estar a dormir no chão? Que voltas teria dado a sua vida? Dei-lhe os trocos que tinha e deixei que a expressão dela me assombrasse o resto do caminho.
Quando cheguei à fila do check-in no aeroporto, percebi que não tinha o bilhete e o passaporte. Não estavam na mala, na mochila do computador nem na bagagem de porão. Senti o desespero turvar-me o raciocínio; tinha perdido a carteira com todo o dinheiro, documentos e cartões. Não tinha absolutamente nada que me identificasse.
Foi uma pessoa da Apple Europa que me ajudou, dando-me os dólares que lhe restavam para pagar um táxi de volta ao hotel e tentar encontrar a carteira. Refiz os passos que tinha dado, olhei para os caixotes do lixo, perguntei a toda a gente que podia.
E nada. Onde é que ia dormir? Não tinha identificação nem meio de pagar hotel. Já não havia ninguém da Apple que me pudesse ajudar àquela hora da noite. Nem sequer havia wi-fi decente e usavam-se cabines telefónicas porque o roaming era caríssimo. Ainda tinha um Nokia. É difícil lembrar como as coisas eram diferentes.
Atónita, implorei ao homem da receção que me ajudasse, não se lembra de mim, eu juro que estive aqui com a Apple, não me faça ir dormir para o passeio, por favor. Ele hesitava e eu só pensava na rapariga que tinha visto horas antes na O"Farrell. Por fim, acedeu, a transpirar, rezando para que eu não fosse uma louca mentirosa. A bondade deste estranho deu-me guarida naquela noite de desespero. Teria de pedir que me enviassem documentação de Portugal com urgência para poder ir ao consulado obter um documento de viagem. Quase não tinha dinheiro. O mundo todo pareceu encurvar-se para o tamanho daquela esquina.
Mas também eu seria salva por desconhecidos. Um dos empregados do hotel, que tinha visto o meu desespero, chamou o staff e encomendou-lhes a missão de encontrar a minha carteira. Viraram tudo enquanto eu estava no quarto a enviar e-mails a pedir ajuda. Passaram o hotel a pente fino, se calhar já depois de terminado o turno, e encontraram a carteira caída debaixo de um móvel. Até hoje não sei como foi lá parar, mas sei que todas estas pessoas não tinham obrigação de me ajudar, e mesmo assim fizeram-no.
Altruísmo puro. Lembro-me muitas vezes da gratidão que senti pelas pessoas que me foram ajudando ao longo do caminho. Às vezes achamos que só valem a pena os gestos grandiosos, mas são estes pequenos gestos de bondade inspiradora que reconstroem todos os dias a fé na humanidade. Esse instinto de generosidade e responsabilidade por estranhos é, como disse Laura Zimmerman, "o único modelo aceitável que existe para a diplomacia".