Qualquer coisa que não seja de esquerda
"Diz qualquer coisa de esquerda" é qualquer coisa que a esquerda gosta muito de dizer. A frase é retirada de Abril, filme do italiano Nanni Moretti, cuja personagem assiste a um debate televisivo entre Berlusconi e o socialista Massimo d"Alema. A prece destina-se naturalmente a D"Alema e naturalmente não adianta de nada. Moretti enerva-se. Não precisava de se enervar: se viesse para Portugal teria imensa dificuldade em descobrir frases que não fossem do seu agrado (por isso é que nós somos o que somos e a Itália é uma potência mundial).
Exemplos são inúmeros, mas para não fugirmos da "actualidade" basta lembrar que, por cá, temos a suprema originalidade de uma campanha presidencial em que nove dos dez aspirantes são de esquerda e o restante finge que também não anda longe. Desde a peregrinação à Festa do Avante! que Marcelo Rebelo de Sousa tomou por garantidos os votos da direita (com e sem aspas) e, entre a bajulação da espécie de governo em funções e a vergonha das próprias origens políticas, partiu à conquista dos outros. Antes de se consagrar como o presidente de todos os portugueses, o prof. Marcelo quis tornar-se o candidato de quase todos. Pelo meio, deixou desamparados os eleitores menos entusiasmados com a golpada do dr. Costa e mais convencidos, inicialmente, de que o ex-comentador da TVI devolveria num instante o país à normalidade democrática.
A ilusão do povo "reaccionário", digamos uns 40% dos cidadãos, era infundada e durou pouco. Quanto às ambições do prof. Marcelo, que a certa altura pareceram tremidas, sobreviveram e talvez se prolonguem por um ou dois mandatos em Belém. Porquê? Por duas razões.
A primeira é o carácter exótico das criaturas que o desafiam. Por muito que o regime já se arraste com dificuldade, ainda não estão criadas as condições de completo desconchavo suficientes para se imaginar Maria de Belém, o reitor Nóvoa ou algum dos demais pândegos no lugar de chefe de Estado. É claro que à esquerda haverá sempre gente disposta a votar na primeira curiosidade antropológica que o partido ou a desdita lhes ponham à frente. Com sorte, porém, essa gente não chegará a metade da população.
A segunda razão prende-se com a opinião pública e publicada. Quando se percebeu que as vénias do prof. Marcelo à esquerda não o resguardariam dos ataques desta, boa parte da direita (com e sem aspas) decidiu subjugar a desconfiança em favor do empenho. Isto é, cada insulto dos adversários recorda às pessoas que pior do que um presidente provisoriamente resignado ao dr. Costa seria um presidente que lhe venerasse a incompetência pela eternidade afora.
Não sei a quantidade de potenciais abstencionistas assim arregimentados. Sei que, por mim, nunca me ocorreu nenhuma vantagem na vitória do prof. Marcelo até ponderar os perigos da sua derrota. E que mesmo que ele não diga nada de "direita", tudo é preferível a ouvirmos a única coisa de esquerda que nos falta: apertem os cintos, senhores passageiros, que dentro de momentos aterraremos em Caracas. Ou o Portugal do futuro, nas palavras do reitor Nóvoa.
Quinta-feira, 14 de Janeiro
Pressão baixa
É um disparate achar-se que o governo só atende a ordens do PCP. E do Bloco de Esquerda. E dos sindicatos. E de economistas gregos. E de visionários bolivarianos. E de astrólogos devidamente habilitados. Ao que tudo indica, o governo também obedece a comentadores de futebol.
Veja-se o caso do popular Eduardo Barroso, o qual tem o poder de anular decisões do ministro da Saúde. Este havia feito determinados convites para a direcção de um hospital lisboeta. Por razões decerto imperiosas, as escolhas não agradaram ao dr. Barroso, pelo que, segundo os jornais, o ministro naturalmente voltou atrás e optou por nomes simpáticos ao fervoroso adepto do Sporting.
Daqui em diante, é de admitir que algumas decisões governamentais aguardem pelo aval de Rui Santos, daquele sujeito forte que gosta do Benfica e de dizer "Ó Sousa Martins!" e do rapaz do Porto que canta numa banda de tributo aos Pearl Jam. Desde que, escusado acrescentar, todos possuam competências técnicas reconhecidas, como uma relação de parentesco com Mário Soares ou assim.
A palavra final a Ana Catarina Mendes, senhora vista com assiduidade nas imediações de António Costa: "O PS mostrou em apenas um mês que é possível governar de forma diferente." Se alguém conseguir desmentir tamanha evidência merece um lugar no Conselho de Ministros ou no Trio d"Ataque.
Sexta-feira, 15 de Janeiro
Checkpoint Charlie
Dos milhões que se diziam "Charlie" há um ano sobram uns poucos distraídos, quase ninguém. Sobretudo após o semanário publicar, há dias, um cartoon que transforma a criança síria afogada numa praia turca num muçulmano adulto que persegue mulheres na Alemanha. Mau gosto? Possivelmente. Mas nunca devia ter sido o "gosto", mau ou bom, a motivar a defesa da revista, aliás fraquinha. O que em Janeiro de 2015 estava em causa era o direito a dizermos o que quiséssemos, que tarados quiseram abolir e que o Ocidente pareceu defender. Pareceu. Afinal, o que se exibiu em vigílias e nas ditas "redes sociais" não passou de sentimentalismo contagioso. Afinal, as inúmeras profissões de fé na liberdade de expressão esvaíram-se no exacto momento em que a expressão excedeu os limites que impomos à liberdade. Afinal, embora não partilhemos os meios, partilhamos os princípios dos assassinos. Os fins não prometem.
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.