Padre nosso
Passaram seis meses desde a tomada de posse do presidente Edgar Silva. Todos se lembram da extraordinária surpresa eleitoral. Muitos preferiam esquecê-la: os ziguezagues ideológicos de Marcelo levaram-no a perder o eleitorado potencial, os candidatos do PS nunca encontraram o seu, o resultado de Marisa Matias limitou-se aos votos do corpo editorial do Público, Paulo de Morais sofreu um internamento por fadiga a dois dias do sufrágio (e em 35 minutos investigou e revelou oito escândalos de corrupção na gestão hospitalar) e, por exclusão de partes, o homem do PCP viu-se empurrado para a segunda volta, na qual garantiu o "pleno" da esquerda e terminou vencedor. Nenhuma sondagem previra isto, mas o presciente Edgar Silva bem avisara que seria "o povo a decidir o futuro de Portugal". Por sorte, o facto de ele só apreciar regimes em que o povo não decide nada não foi para aqui chamado.
Goste-se ou não, a verdade é que se tratou do primeiro chefe de Estado a cumprir uma promessa ainda antes de tomar qualquer medida. Nos tempos em que era apenas um humilde deputado regional, jurou não descansar enquanto houvesse uma pessoa com fome na Madeira ou a dormir nas furnas. Mal se instalou no Palácio de Belém, o presidente Edgar assegurou que o tal madeirense se alimenta em condições e não pernoita em sítios esquisitos. Na altura, declarou que "o sonho de um homem tem a dimensão do seu bem-estar", frase que uns atribuíram aos evangelhos e outros a Mao Zedong, embora na realidade pertencesse a um folheto promocional do condomínio Pastagens da Nespereira. Já as medidas iniciais propriamente ditas suscitaram certa polémica. Na campanha, o presidente Edgar manifestara com insistência o desejo de uma nova humanidade, de uma cidade nova, de um tempo novo, de novos meios, de novas respostas e de um novo rumo para o país. Tanta fome de novidade, porém, não o impediu de regressar recorrentemente à Constituição e aos "valores de Abril". Numa reunião de urgência, logo a abrir o mandato, o presidente Edgar tentou convencer o primeiro-ministro a mexer no calendário e a decretar 25 de Abril sempre. Consta que António Costa se terá oposto de forma irreversível à ideia, só a aceitando após cinco minutos de excitadas negociações. Consta também que o chefe da Casa Civil, Arménio Carlos, teve papel decisivo no estabelecimento de consensos ao sugerir a manutenção do 1.º de Maio entre os primeiros 120 dias 25 de Abril e os 244 dias 25 de Abril seguintes.
Esta magistratura de influência tem sido usada com frequência e, essencialmente, consiste no seguinte: o Comité Central dá uma ordem; o presidente acata-a e transmite-a ao governo, junto com uma caixinha de bombons e a sugestão de que o não cumprimento implica a perda de apoio parlamentar do PCP e a subsequente queda; o governo obedece. Aconteceu assim, por exemplo, com o processo de nacionalizações, o qual envolveu a princípio a banca e entretanto alargou-se aos transportes (todos, táxis e Uber incluídos), as "indústrias estratégicas" (quase todas, da corticeira à de meias solas), a distribuição alimentar, 17 vendedores de gelados e, através de subsídios, a maioria dos media (de saudar o retorno das prédicas do capitão Duran Clemente ao horário nobre dos três canais generalistas). Não era à toa que o presidente Edgar prometia um Estado mais interventivo, proeza que alguns consideravam impossível.
E aconteceu assim com a regionalização, que o presidente Edgar sempre defendeu sem necessidade de referendo (o argumento de que "muitas vezes o povo, coitado, não sabe o que é melhor para si" marcou o discurso do 10 de Junho, perdão, do 25 de Abril, que calhou no antigo 10 de Junho). Hoje, o país encontra-se a caminho de ser retalhado em nove zonas óbvias: Lisboa e Vila Franca; Rua Soeiro Pereira Gomes; Margem Sul; Setúbal e Lisnave; Alto Alentejo; Baixo Alentejo; Médio Alentejo; Faro e Praias Estatais; Resto. E Edgar tornou-se de facto o presidente de todos os portugueses que habitam a sul da Marinha Grande e não trabalham no setor privado e jamais estiveram ligados à banca, ao retalho de leguminosas ou a outras fontes de especulação financeira.
No plano internacional não faltaram inovações. Acompanhado por inúmeros administradores de empresas públicas, dois grupos de cante alentejano e um praticante de malha, o presidente Edgar visitou Pyongyang, cidade geminada com o Redondo e que o recebeu com lágrimas de alegria. Na volta, trouxe uma encomenda de 40 faqueiros e um retrato emoldurado de Kim Jong-un. Agora que Portugal se prepara para abandonar a União Europeia, e que as afirmações do presidente Edgar acerca da "grande fidalguia mercantil" que "soçobrou ao jugo espanhol" não foram bem acolhidas em Madrid, a diversificação de parceiros políticos e comerciais é uma excelente notícia. Quanto à saída da NATO, está praticamente concluída, e finalmente as nossas Forças Armadas puderam participar em exercícios com tropas anti-imperialistas como os exércitos das FARC e do Hamas. A cerimónia do aluguer da Base das Lajes a Cuba foi um momento comovente.
Por fim, uma palavra sobre o grande desígnio do presidente Edgar. Após uma carreira política dedicada aos pobres, seria natural que a ação do chefe de Estado se concentrasse na erradicação do capitalismo e na resistência aos mercados. Não admira, pois, o efeito destes seis meses de mandato na pobreza: um aumento sem precedentes. A desigualdade, porém, definha a olhos vistos. Claro que o governo chegaria lá sozinho, mas para quê esperar?