Desafio à autenticidade

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O terrorismo é essencialmente uma estratégia política, usada no início como instrumento do fraco contra o forte, visando quebrar a relação de confiança entre a sociedade civil e a capacidade dos governos no exercício do dever de proteção, com uma argúcia na área muçulmana: introduzir valores religiosos no conceito estratégico, fortalecendo dessa maneira a mobilização dos crentes para o sacrifício pessoal recompensado no além. É um fenómeno específico que se inscreve no que chamam "as guerras irregulares", em que Mao Zedong figura como teorizador, sendo que no caso presente, em que os avisos dos analistas repetiam a conclusão de que "há guerra em toda a parte", em relação ao terrorismo muçulmano foi afirmado que havia uma "guerra que não assume o nome", com a crise económica e financeira a absorver as atenções dos responsáveis orientados por uma ideologia orçamentalista.

Entretanto as desigualdades sociais mundializaram-se, a forme alastrou, a "maioria desamparada", como lhe chamou Debré, cresceu; por outro lado, primeiro com benevolência interesseira, por ser barata e desprotegida a imigração dos trabalhadores, a corrente foi dinamizada pelos não previstos consequencialismos da chamada "primavera árabe", pelas erradas intervenções ocidentais por exemplo no Iraque e na Líbia, de modo que quando os atentados desmentiram a tranquilidade que J. Cesari, mesmo não intencionalmente, fez nascer ao afirmar que "o islão muda a Europa, tanto quanto a Europa muda o islão", o Estado Islâmico já desafiava as tradicionais hierarquias internacionais, quer dos Estados quer dos agrupamentos de Estados como a União Europeia, terminando com o descaso que levara a NATO a reconhecer haver "uma guerra que não assume o nome".

Tal presença dinamizadora do Estado Islâmico cresceu de importância no conjunto de causas que de longe foram destruindo a ordem internacional sonhada pela ONU, a anarquia fez nascer uma época de imprevisibilidade, os grupos já fixados na Europa, sem serem comunidades mas apenas multidões, impuseram finalmente políticas controladoras das migrações ilegais, desacreditando, em nome da segurança, as vozes que chegaram a opor-se à existência da organização Frontex. Alguma coisa mudara em relação à época em que as migrações eram geralmente consideradas importantes para o desenvolvimento económico e carências, como foi o caso português em relação às remessas, para dominar a imagem da ameaça depois do ataque às Torres de Nova Iorque, em 2001, com o Conselho de Segurança emitindo a Recomendação n.º 1373 a recomendar a filtragem nas fronteiras, despertando a intervenção da Comissão Europeia, no ambiente em que a Organização Internacional das Migrações acentuava que "o terrorismo é uma experiência que evidencia a pertinência das políticas de emigração".

Ainda assim não faltaram críticas à associação do terrorismo às migrações, em vez de reconhecer que se tratava de identificar, em legítima defesa preventiva, a infiltração com propósitos de ataque. Levou tempo para não confundir cosmopolitismo com multiculturalismo violável, até chegar a dar nome às guerras, com a atenção despertada pelos atentados de Paris e Bruxelas, a exigirem, no dizer de Rodier, a "militarização dos controlos migratórios".

Podemos reforçar a conclusão com a chegada da Legião Estrangeira a Paris, o que obriga a colocar o tema da autenticidade. Esta traduz-se em respeitar a Declaração Universal dos Direitos Humanos e suas derivadas normativas, em ativar a vigilância do alto-comissário para os Refugiados, destacando-se o texto de François Cerepeau, relator especial da ONU sobre Direitos do Homem dos Emigrantes (2013), não podendo ser descurada a ocorrência de conflitos entre os deveres humanitários e os direitos dos cidadãos à segurança.

A situação faz recordar o drama do major Lawrence da Arábia, a arbitrária criação de unidades políticas em que foi dividido o espólio turco depois da guerra de 1914-1918, os erros das intervenções militares da nossa época, para compreender que tinham razão os analistas que avisaram que o "terceiro mundo" considerava os ocidentais como os maiores agressores dos tempos modernos. A ameaça e as suas consequências vão ser demoradas. Mas as advertências do Papa Francisco ajudam a tornar claro que a perda da autenticidade, inspirada pelo medo, seria a maior vitória deste terrorismo que está a impor a militarização do respeito pela paz.

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