ONU: um guião para a paz na Ucrânia

Publicado a
Atualizado a

Já passou mais de um mês desde o envio de uma carta aberta ao secretário-geral da ONU sobre a situação na Ucrânia, assinada por antigos altos funcionários. Entretanto, António Guterres esteve em Moscovo e em Kiev, e conseguiu fazer avançar a resposta humanitária das Nações Unidas. A dimensão política continua, porém, a ser determinada noutras sedes. De um modo geral, as palavras vindas do Ocidente têm estado a acentuar a possibilidade de uma vitória ucraniana. Declarações desse tipo tendem a agravar o confronto. É verdade que tem havido um aumento considerável do apoio em armamento à Ucrânia e que isso é positivo, ao permitir redobrar os esforços de legítima defesa. Mas, publicamente, deve-se falar apenas de legítima defesa e, em tandem, da urgência da paz.

Neste contexto, faz todo o sentido que o secretário-geral seja o porta-estandarte de um processo político que reconheça, simultaneamente, o direito à legítima defesa, às indemnizações de guerra, bem como o imperativo de um acordo de paz, garantido pelas Nações Unidas.

Uma nova carta aberta deveria agora insistir nessa linha de atuação. Um rascunho foi preparado esta semana. Fui um dos que consideraram o texto demasiado vago, quando o momento exige clareza e uma assunção firme das responsabilidades. Por isso e para já, não haverá uma nova missiva da nossa parte.

O importante é mostrar que o pilar político das Nações Unidas tem a autoridade necessária para propor uma saída da crise que contrarie a escalada da agressão militar e impeça a destruição da Ucrânia.

A agenda política da ONU poderia ser construída à volta de quatro linhas convergentes de intervenção.

Primeiro, procurando estabelecer pausas temporárias dos combates, em várias localidades consideradas vulneráveis, de modo a proteger os civis e a facilitar a assistência humanitária. Nessa visão, as pausas seriam monitorizadas por um contingente de observadores das Nações Unidas, com um mandato do Conselho de Segurança. A proposta de criação de um grupo de monitores internacionais seria apreciada por muitos, embora se reconheça que encontraria imensos obstáculos para ser aprovada.

Segundo, mantendo um apelo permanente, repetido até ser ouvido, para que cessem as hostilidades e se aceite um processo de mediação liderado pela ONU, que poderá incluir a preparação de uma conferência sobre um novo quadro de cooperação e segurança na Europa.

Terceiro, lembrando continuamente os Protocolos de Genebra sobre os limites da guerra. A grande preocupação é a defesa das populações civis. Os ataques indiscriminados são proibidos; os atos de violência militar para criar terror são um crime de guerra; as infraestruturas indispensáveis à sobrevivência das comunidades devem ser poupadas; certos tipos de munições são absolutamente interditos, incluindo as bombas de fragmentação, as armas químicas e biológicas. É igualmente altura de sublinhar as regras sobre o tratamento dos prisioneiros de guerra, agora que os defensores do último reduto em Mariupol se renderam às tropas russas. Essa rendição é um acontecimento altamente político e simbólico, que pede uma referência especial, em defesa dos direitos desses prisioneiros. E de todos os outros, claro.

Ainda sob esta rúbrica, parece-me essencial reiterar que a ONU já está empenhada na documentação dos possíveis crimes de guerra e que procurará, na medida do possível, aumentar os seus esforços nessa matéria.

Quarto, tendo presente as divisões existentes no Conselho de Segurança e considerando esta guerra a maior ameaça dos últimos 77 anos, o secretário-geral poderia tentar constituir um Grupo de Contacto sobre o conflito. Um grupo assim congregaria vários países influentes que estariam em constante ligação com Guterres na procura de soluções. É uma maneira de multiplicar a capacidade de intervenção do secretário-geral e de criar um círculo de apoio que o proteja dos ataques políticos. Permitiria, além disso, mostrar que a crise tem um âmbito internacional e não apenas europeu.

Nada disto seria fácil. Mas o certo é que a função de secretário-geral da ONU é tudo, menos uma tarefa cómoda.


Conselheiro em segurança internacional. Ex-secretário-geral-adjunto da ONU

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt