Como quem segue minimamente o fenómeno saberá, é prática comum, nas conversas de adeptos de futebol, “agradecer-se” uma derrota num jogo-teste antes de uma grande competição, quase como se de uma bênção se tratasse. “Antes agora do que quando for a sério”, porque “assim ainda vão a tempo de acordar” e podem “retificar os erros para estarem prontos para as decisões”, são desculpas repetidas, seja por real crença no processo ou mera vontade de continuarmos a iludir-nos com a ideia de que algo vá mesmo mudar..Noutros campos do dia a dia, no entanto, essa faculdade de agendar jogos-teste para projetar em condições reais os grandes e definitivos eventos que nos hão de surgir pela frente não é assim tão simples de gerir. Por muitos simulacros que possamos fazer de incêndios, acidentes ou sismos de grande magnitude, nada nos prepara para isso com o grau de realismo de um frango cometido pelo guarda-redes no último amigável de preparação para o Campeonato do Mundo. E, no entanto, quando a altura chegar, não haverá nada mais terrível do que falhar por culpa própria, num cenário em que nem o comportamento exemplar é garantia de sobrevivência..Sabemos que somos culturalmente de trancas à porta após casa roubada, de um deixa andar que logo se vê, num misto de resolução chico-esperta e fezada na Virgem que nos vai movendo ao estilo avestruz, cabeça na areia, a rezar para que não se passe nada. É assim que nos temos comportado em relação ao risco sísmico no país..E não é por falta de aviso. Ele está por demais conhecido e identificado, os especialistas tratam de alertar repetidamente para a necessidade de nos prepararmos e há esse Terramoto de 1755 como prova gritante de um risco factual de proporções bíblicas..Naquela altura, com a tragédia cravada nas ruas, a reconstrução pombalina encheu-se de brio, à luz da melhor “tecnologia” da época, e dela emergiram as icónicas Gaiolas pombalinas que ficaram como traço identitário do renascimento urbanístico de Lisboa, estruturas de madeira em forma de enormes gaiolas de pássaros compostas por elementos verticais, horizontais e cruzados que davam uma resistência sísmica adicional aos edifícios. Ao que consta, no Terreiro do Paço terão sido até montados grandes estrados onde se pousavam estruturas de gaiolas pombalinas cuja resistência era testada por soldados a bater com martelos na base, para simular um sismo, num teste de pré-época que permitiu afinar a tática de engenharia..Hoje, no entanto, já lá vão quase 300 anos e o grande terramoto reside na memória coletiva apenas como mais um capítulo dos manuais de História, algo quase tão mitológico como o Adamastor, que engolia as caravelas nas Tormentas..As gaiolas pombalinas já deram lugar, a maioria delas, a amontoados de novas paredes e divisões a chamar por desgraça, em construções ou reconstruções desregradas ao longo de décadas..As “novas” leis de construção antissísmica vigoram desde 1983, mas os próprios especialistas duvidam que sejam praticadas a sério e a fiscalização é inexistente. E mesmo que o fossem, dados divulgados no ano passado mostram que quase 68% dos edifícios da Área Metropolitana de Lisboa foram construídos ainda antes de existir legislação de proteção sísmica eficaz. Aliás, nem os próprios edifícios de hospitais, bombeiros e outros serviços de emergência estão devidamente preparados para um sismo de grandes dimensões..E a literacia da maioria da população sobre o assunto não passa de um simulacro feito de esguelha na empresa, só para que esta receba o visto legal obrigatório..Portanto, se o sismo desta segunda-feira serviu para despertar consciências sobre um evento maior que voltará a chegar, não o desperdicemos. Nem gastemos o foco no acessório, com polémicas forçadas, como a do alegado atraso de um aviso da Proteção Civil..Como ontem sublinhava o geólogo Martim Chichorro aqui neste jornal, devemos querer é que a população esteja devidamente informada sobre como atuar em situações destas, sem precisar de ficar à espera de qualquer notificação. Como devemos querer que as regras de construção antissísmica nos edifícios sejam devidamente seguidas e fiscalizadas. Como devemos exigir que o Estado seja o primeiro a dar o exemplo nas obras da sua responsabilidade, em hospitais, creches, escolas, quartéis de bombeiros. Como devemos questionar por que razão não avança a tão pertinente certificação sísmica dos edifícios (à semelhança da certificação energética), reclamada há anos pelos engenheiros. Como devemos incomodar-nos com o simples facto de não termos, sequer, uma cartografia detalhada das zonas de risco sísmico no país, segundo denunciou Chichorro na mesma entrevista ao DN..Felizmente, este nem foi um jogo-teste brutal, daqueles que deixam goleadas difíceis de sarar até ao desafio a sério. Foi, acima de tudo, um alerta útil para que não desperdicemos mais tempo de preparação a partir de agora. Há muito para melhorar. E ontem já era tarde..Editor do Diário de Notícias