Onde é que existe um rio azul igual ao meu? E com roazes?

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"Golfinhos num rio? Espantoso, nunca tinha ouvido falar!”, diz-me uma jornalista americana quando lhe explico que trabalho em Lisboa, vivo em Lisboa, mas a minha terra é Setúbal. E que em redor dela, as paisagens são belíssimas, seja a Arrábida seja a Troia. E, claro, falo dos nossos roazes corvineiros, que desde criança me habituei a ver no Sado, às vezes a acompanhar o ferry (para os setubalenses, o ferribote) ou a passar junto à praia na maré cheia. Agora, como explicar que o Sado é um rio, nem sequer muito extenso, mas com um estuário imenso, mais água salgada do que doce e portanto lar para os golfinhos? Como a jornalista me disse conhecer Lisboa, tentei explicar que, tal como o Tejo, o Sado mistura-se com o Atlântico de uma forma bem mais espetacular do que a maioria dos rios. E a seguir peguei no telemóvel e mostrei-lhe um vídeo dos golfinhos aos saltos no Sado, no qual apareciam umas crias a brincar com os mais velhos. E expliquei que graças às pequenas diferenças na barbatana dorsal os biólogos até sabem distinguir cada um deles. “Really?”, foi a resposta em forma de pergunta. Sim, a sério.

Sou um pouco bairrista, mas não demasiado. Talvez a única coisa que mostra ser apegado à cidade onde nasci, e onde nasceram os meus filhos, seja o carinho pelo Vitória. Sim, não tenho mais nenhum clube. E irrito-me quando insistem para dizer se sou do Porto, do Sporting ou do Benfica, principal suspeita por morar hoje não muito longe do Estádio da Luz. Outra coisa que não deixo de elogiar a Setúbal é o peixe, e basta ir ao mercado do Livramento (a praça, como sempre disse a minha mãe) para ter a prova disso. Tanta diversidade: os salmonetes, as douradas, os robalos, os linguados, os besugos, também as xaputas e os pampos, peixes menos cotados mas que vivem bem sem fama - experimentem umas postas de xaputa frita ou uns filetes de pampo de cebolada e depois digam-me.

Estou aqui a falar de Setúbal por causa de uma estrangeira que encontrei há dias fora de Portugal ter mostrado curiosidade. E, de repente, escrevendo a uns milhares de quilómetros de casa, fico sentimental, saudoso da vista do forte de São Filipe, a que chamamos castelo, de um café numa esplanada na praça de Bocage ou de comer uns caracóis no ComiCala, na Fonte Nova. Também recomendo uma sandes de choco frito, mas só em alguns restaurantes, como a Casa Santiago ou o Cais 56, ambos nas Fontainhas. Aproveito para dizer que vale bem a pena provar num dos restaurantes da Luísa Todi - que pena a Ribeirinha do Sado ter fechado - uns choquinhos com tinta, grelhados na brasa e depois cortados aos pedacinhos e servidos com cebola picada e salsa, bem regados de azeite e um pouco de vinagre. E um dia prometo revelar aqui a receita caseira que mais potencia o sabor da tinta do choco.

Deixem-me acrescentar que Setúbal é também Azeitão, a terra do Moscatel da José Maria da Fonseca. E do queijo. E das famosas tortas. Lembro-me que José Mourinho, setubalense tão ilustre que já tem avenida com o nome (e juntou-se ao poeta Bocage e à cantora lírica Todi no panteão da terra), na primeira vez que foi treinar o Chelsea, fez vir a Setúbal muitos jornalistas britânicos em busca das suas origens mas que acabaram por destacar também a cidade. Recordo em especial um artigo no The Guardian que falava da Arrábida como uma espécie de joia escondida.

Mourinho, que tantos em Setúbal esperamos que um dia salve o nosso Vitória (o Vitórrria), anda agora a treinar o Fenerbahce. Provavelmente um dia destes haverá artigos na imprensa turca sobre a nossa cidade. Mas enquanto esperava por um clube depois de sair do Roma fez um filme promocional para a Adidas que teve Setúbal como cenário. Ao jornal Setubalense, disse:  “Para mim dá-me prazer que as pessoas conheçam as minhas origens, podendo agora gravar no sítio onde eu nasci e cresci”. Gostei especialmente de ver o treinador que já ganhou várias taças europeias sentado à porta de um café onde se lê “há isco para a pesca”. Sim, porque em Setúbal ainda se pesca e as traineiras na doca dos pescadores não são um mero postal turístico, mesmo que ajudem à promoção da imagem da cidade, tal como o convento de Jesus ou as praias da serra da Arrábida.

Voltemos aos golfinhos. Há outros rios onde vivem certas espécies fluviais, como o Amazonas ou o Ganges. Dois rios que são bem mais famosos do que o Sado. Mas talvez um dia a jornalista americana visite Setúbal e perceba que, como diz a canção, não há mesmo um rio azul igual ao meu e ainda por cima tem roazes aos saltos. 

Diretor adjunto do Diário de Notícias

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