Olhar para 2023 de modo diferente
Esta é a altura do ano em que certos intelectuais fazem concorrência aos bruxos e a outros adivinhos. Desembrulham as caixas onde guardam as suas bolas de cristal e fazem previsões para o Ano Novo. E acham que isso lhes dá muito prestígio -- o prestígio continua a ser um bezerro de ouro muito venerado. Até jornais de grande reputação entram nesse número. O Financial Times, por exemplo, havia previsto, no exercício do ano passado, que não havia qualquer tipo de justificação política que nos fizesse pensar que Vladimir Putin viesse a atacar a Ucrânia em 2022. A bizarria foi publicada meia dúzia de semanas antes do início da agressão russa.
Esse e outros vaticínios errados mostram a imprevisibilidade do tempo que vivemos, e que em vez de conjeturas para o novo ano, devemos sobretudo focar-nos no que gostaríamos de ver realizado e apontar pistas para o conseguir. Deve ser uma reflexão positiva, a pensar num futuro melhor. Ou, pelo menos, um chamamento à prudência, um alerta que nos faça ponderar nas precauções que devem ser tomadas.
A grande questão, neste início de ano, é ainda sobre o comportamento de Putin. Mas não se trata de saber se haverá um cessar-fogo e mesmo, uma mediação de paz, entre o partido da guerra que controla a Rússia e a liderança ucraniana. A resposta que daria a uma questão dessas seria negativa -- não vejo Putin pronto para uma paz justa e respeitadora da Carta das Nações Unidas. E também não creio, apesar do heroísmo e da sua mestria militar, que a Ucrânia consiga reunir nos próximos meses as condições necessárias para forçar uma negociação. Existe, isso sim, o risco de um impasse operacional. Observaremos igualmente o agravamento da opção político-militar de Putin: intimidar a população ucraniana na vã esperança da sua rendição ou da criação de uma atmosfera política que permitisse uma reviravolta no poder em Kiev. Com esse objetivo em vista, irá expandir a destruição das infraestruturas e a disrupção do quotidiano dos cidadãos ucranianos.
Esta é a perspetiva para 2023, algo inadmissível e forçosamente evitável. Mais, o prolongamento da campanha russa traz consigo o risco, acidental ou deliberado, de pegar fogo à Europa Ocidental e mais além. Razão muito forte pela qual este tem de ser o ano de uma iniciativa de paz, liderada pelos europeus e em colaboração com os EUA e a China, entre outros.
Sim, com a China, mas não com os BRICS, que são uma estrutura cheia de problemas internos -- Brasil, África do Sul -- e de rivalidades entre a Índia e a China. E o relacionamento com a China não prejudica necessariamente a aliança entre os europeus e os norte-americanos, nem contradiz o apoio que temos o dever de continuar a fornecer à Ucrânia. A complexidade do conflito exige uma maneira criativa de intervir na sua solução.
A direção dos ventos parece estar a mudar em Beijing. Esta semana, logo no primeiro dia do ano, o presidente Xi Jinping nomeou um novo ministro dos Negócios Estrangeiros, que fora nos últimos 17 meses o embaixador da China em Washington. Qin Gang, assim se chama o novo titular da máquina diplomática chinesa, tem uma relação muito cordial com Antony Blinken, o seu homólogo norte-americano. A sua estada em Washington e as primeiras declarações que fez, já no novo cargo, revelam que uma das grandes apostas de Xi Jinping para 2023 passa pela melhoria das relações diplomáticas entre as duas superpotências. O anterior ministro dos Negócios Estrangeiros, Wang Yi, que esteve no posto durante dez anos, passou a ser visto como demasiado alinhado com o russo Sergey Lavrov. Transmitia assim uma mensagem política agora vista por Xi como inconveniente. Foi empurrado para cima, para o Secretariado do Partido Comunista, função que nas circunstâncias atuais é mais formal do que de poder efetivo. Quem manda no Secretariado, especialmente numa matéria tão sensível como a diplomacia com os EUA, é Xi Jinping e quem irá implementar essa política será Qin Gang e o seu ministério. O encontro entre Biden e Xi em novembro, na cimeira do G20, terá sido mais construtivo do que então se pensou.
Não precisamos de uma bola de cristal para perceber que existe aqui uma oportunidade que pode ser explorada em 2023, a favor da Ucrânia.
Conselheiro em segurança internacional.
Ex-secretário-geral-adjunto da ONU