Olhar a montante

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Temos todos assistido, com pesar, incredulidade e preocupação, ao rasto de destruição deixado pela depressão isolada em níveis altos (DANA, no acrónimo espanhol) no Sudeste do país vizinho, em particular na região de Valência. Perda de vidas humanas a níveis que julgaríamos inimagináveis num país desenvolvido, edifícios e infraestruturas arrasadas, populações inteiras sem acesso a condições básicas de vida. O impacto severo deste fenómeno trouxe, por e para onde correm as águas, terror, estupefação, descoordenação, mas também muita solidariedade e entreajuda.

Muito haveria a dizer, mas não pretendo aqui fazer uma avaliação das decisões, ações e comportamentos dos vários atores, nomeadamente políticos, nesta jusante dos acontecimentos. Também não tentarei buscar as causas mais estratosféricas do problema, que, sendo reais, não estão ao alcance de serem abordadas e resolvidas num plano mais estrito de atuação, que é o que normalmente está ao nosso dispor. Interessa-me antes trazer aqui um ponto de vista neste “ciclo da água” metafórico: o de olhar a montante no fluxo do problema e perceber se algo está ou poderia ser feito.

Pensar e atuar sob esse ponto de vista é um desafio especialmente complicado no plano político, em particular nas democracias.

 É fácil perceber, para titulares de cargos públicos e cidadãos, que mobilizar meios de socorro, suprir necessidades básicas de populações afetadas, proceder a limpeza de escombros, recuperar infraestruturas são tudo medidas que devem ser realizadas. Isto é a jusante.

Catástrofes desta natureza também favorecem um campo macro de discussão política, discussão essa a que o público em geral é especialmente sensível. Alterações climáticas, cumprimento das metas de diminuição de carbono, mudança do paradigma energético, repensar padrões de consumo são todos temas de fácil mediatização e que, portanto, também atraem a atenção política. Isto é, na metáfora que usei, o nível “estratosférico”.

No entanto, a atenção mediática e do cidadão médio está tipicamente pouco interessada em medidas e ações que, feitas a montante, são especialmente eficazes para solucionar ou mitigar os problemas quando eles surgem. Por exemplo, a Valência da “Ciudad de las Artes y las Ciencias” investiu o necessário em desocupar e preparar leitos de cheia? A Valência de “Las Fallas” soube robustecer as suas infraestruturas para contextos de pressão elevada? É difícil estabelecer estas prioridades num contexto de ciclos políticos de curto prazo. Essas propostas, num programa eleitoral, não ganham um voto, exceto quando a emergência chega à porta das pessoas e já é tarde demais.

Não são, com certeza, só os responsáveis políticos de Valência que têm dificuldade em assumir este ponto de vista a montante. É um problema crónico e generalizado nos decisores públicos em geral. Estão os edifícios (nomeadamente os públicos, como hospitais e escolas) e infraestruturas da Grande Lisboa ou do Algarve capazes de aguentar o próximo grande sismo, por exemplo?

Urge pensar como atribuir a este ponto de vista uma contínua atenção e pressão mediática e eleitoral correspondente à sua importância. Cabe aos políticos fazê-lo, mas também aos cidadãos, à academia e demais entidades e à comunicação social.

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