Obsessão

Gosto de obsessivos, talvez por ser um deles. Pensemos: tudo, praticamente tudo, o que de bom e de mau tem acontecido à Humanidade desde o início dos tempos tem sido fruto de taras ou manias compulsivas, das idées fixes de impérios, nações ou de indivíduos, que tanto querem conquistar a Rússia ou abocanhar a Ucrânia, como descobrir a cura para o cancro, ir à Lua ou a Marte, inventar a luz eléctrica e agora esta maldita Inteligência Artificial. A sorte e o acaso também têm um papel relevante, é certo, mas a sorte e o acaso só surgem, regra geral, porque existe alguém obsessivamente apostado em recolher-lhe os frutos: sem dúvida que Fleming teve muita sorte com os fungos da penicilina, que medraram nas placas do seu laboratório enquanto estava de férias, mas isso só aconteceu, como é óbvio, porque ele e a sua equipa já andavam há muito a investigar a matéria, compulsivamente, obsessivamente.

O mais estranho e bizarro é que, sendo por natureza irracional, a obsessão tem uma racionalidade própria e, quando bem canalizada, o que nem sempre sucede, produz resultados racionais espantosos, maravilhosos. Há coisa de um ano, numa crónica intitulada Pianos Siberianos, falei aqui de Sophy Roberts e do seu livro The Lost Pianos of Siberia, depois disso traduzido e publicado entre nós (Os Pianos Perdidos da Sibéria, Temas e Debates, Julho de 2022). Sophy é uma escritora e jornalista freelancer, formada em Oxford, com um mestrado em Jornalismo por Columbia, que trabalha para grandes instituições, como a BBC, a The Royal Geographic Society, a revista The Economist, o Financial Times, para não falar da Bloomberg, The Wall Street Journal, etc., etc. Vive em Dorset, na Inglaterra profunda, mas percorre o mundo em busca de histórias, do Congo à Papua Nova Guiné.

Naquele seu livro, o primeiro que publicou, deu-lhe para, imaginem, tentar localizar os pianos que, no tempo dos czares, eram levados para a Sibéria, por razões várias, também elas obsessivas, como obsessivo e insano era o trabalho para os transportar por montes e vales gelados, por lagos a perder de vista, por caminhos traiçoeiros e perigosos, sempre com a morte à espreita. Pianos na Sibéria?! Quem ler o livro de Sophy Roberts terá uma pálida ideia das canseiras e das agruras por que a autora passou naquele tão louco intento: dias, semanas, por vezes meses a fio apenas para descobrir um piano perdido, já mudo e quase desfeito, no armazém de um velho teatro de uma terra ignota. E tudo isso, claro, ou não estivéssemos nos confins da Sibéria, com um frio de ensandecer, dias e dias sem poder sair de casa, ou enfrentando mil perigos, dormindo na companhia de estranhos, alguns de péssimo porte.

Não é receio dizer-se que a jovem jornalista arriscou a vida, muito e muitíssimo, numa empresa que a todos parecia doida, inconsequente, irrelevante para a ciência e a história, mas que no final veio a mostrar-se um sucesso, literário e emocional, já traduzido em seis línguas ou mais.

Outra mulher, outro livro: Desaparecer na Escuridão, de Michelle McNamara (Relógio D"Água, Julho de 2018). A história conta-se assim: durante mais de dez anos, entre 1974 e 1986, um abominável serial killer assolou a Califórnia, deixando atrás de si um rasto de, pelo menos, 13 homicídios, 51 violações e 120 roubos. A descrição dos seus crimes é horripilante, como é horripilante a perfídia e a maldade como tratava as vítimas: geralmente, a mulher era forçada a amarrar o marido ou companheiro antes de ser barbaramente violada, espancada e depois morta. A seguir, era frequente o violador-assassino passar horas e horas nas casas das vítimas, furtando objectos de pouco valor, levando o dinheiro guardado nas gavetas, vasculhando os armários das roupas, sobretudo femininas, vendo um pouco de TV, mordiscando o que houvesse no frigorífico.

A polícia andou no seu encalço durante anos, a imprensa deu-lhe nomes variados, todos grotescos ("East Bay Rapist", "Diamond Knot Killer", "Golden State Killer", o mais conhecido), mas não conseguiu resolver o caso, acabando por arquivá-lo, ou quase. E aqui entrou Michelle McNamara, uma escritora e jornalista que desde jovem era apaixonada, fascinada, obcecada com histórias de crimes reais, paixão nascida do facto de, quando criança, viver a dois quarteirões de uma rapariga chamada Kathleen Lombardo, cujo horrendo homicídio nunca foi esclarecido.

Como jornalista, Michelle especializou-se em narrativas de true crime, montou uma equipa de investigadores, criou um site onde dava conta dos avanços das suas buscas e onde recebia centenas de denúncias, pistas, informações. Na versão inglesa, o seu livro tem o subtítulo One Woman"s Obsessive Search for the Golden State Killer, traduzível à letra por "A Busca Obsessiva de uma Mulher pelo Golden State Killer", mas talvez fosse mais acertado dizer-se "A Busca de uma Mulher Obcecada pelo Golden State Killer", já que demencial não foi somente a investigação de Michelle, mas também, ou sobretudo, quem a protagonizou.

Quem ler o livro, ficará decerto impressionado com o horror dos crimes do homicida em série, mas ficará ainda mais assombrado pela loucura, pela absoluta loucura, da demanda de Michelle McNamara e de outros como ela, detectives amadores que muitas vezes ajudam e outras tantas atrapalham o trabalho das polícias. A Internet potenciou o fenómeno do detectivismo amador e hoje há nerds que passam dias e noites, sem comer, nem dormir, a analisar e a perseguir pistas em fóruns privados e grupos de discussão, detendo-se em pormenores ínfimos, como saber quais as peças de um modelo de aspirador vendido na Costa Leste dos EUA nos Anos 1950, e de há muito descontinuado.

A tara virou tragédia: casada com o comediante Patton Oswatt, de quem teve uma filha, Michelle foi devorada pela caça, deixou de ligar a tudo e todos, 24 horas por dia em busca do criminoso em série. Viciada em drogas e em ansiolíticos, com uma doença cardíaca, morreu de overdose acidental no mesmo dia que Prince - em ambos os corpos seriam encontradas quantidades fenomenais de fentanil e porcarias congéneres. Quando morreu, Michelle tinha escrito cerca de dois terços do seu livro, que posteriormente seria concluído por outros, e não teve a ventura de apanhar a sua presa. Mas a sua investigação acabou por revelar-se decisiva para a captura do Golden State Killer, dois anos depois, em Abril de 2018.

Chamava-se Joseph James DeAngelo e, entre outras ocupações, tinha sido polícia no Condado de Exeter, até ser dispensado por furtar em lojas e ameaçar de morte o xerife local. Cumpre hoje uma de várias prisões perpétuas, após ter negociado a isenção à pena de morte. Portanto, um caso trágico de dupla obsessão: a do criminoso, insaciável na violação e na morte, insensível ao sofrimento alheio, e a da jornalista investigadora, incapaz de parar na sua pesquisa autodestrutiva.

O "golpe muito mais extenso e profundo do que a mais light 'teoria do lóbulo' sempre pretendeu fazer crer (...), a juntar ao ar andrajoso com que se autorretratou no final da vida, suscita ainda maior compaixão pela sua tragédia íntima, tanto mais que, e ao contrário do que a ideia do 'louco Van Gogh' faz crer, Vincent era um homem que, em Bruxelas e Paris, gostava de se vestir com aprumo e elegância."

Há dias, a tara livresca trouxe-me às mãos - e aos olhos - o produto de uma outra obsessão feminina. Chama-se Van Gogh"s Ear, tem o subtítulo escusado The True Story, e, como o nome indica, são 319 páginas em letra miudinha dedicadas ao lóbulo esquerdo de um pintor holandês hoje famoso. A autora, Bernardette Murphy, define-se como uma "britânica de origem irlandesa" e tem uma paixão francófona: em 1983, foi visitar um irmão à Provença, regressou a casa, na húmida Inglaterra, mas nem aguentou uma semana - ao fim de dias, estava de volta ao sul de França, onde reside há mais de 30 anos.

Em 2007, teve uma crise e uma epifania: a irmã acabara de morrer, ela estava doente e triste, fartinha de dar aulas na universidade, e decidiu então dar uma volta radical à vida. Como morava numa aldeia perto de Arles, começou a interessar-se pelo que lá sucedera num domingo de há muitos anos, 23 de Dezembro de 1888, quando, por volta das 11h45 da noite, um polícia de giro foi chamado às pressas à Maison de Tolérance nº 1, sita na esquina da Rue des Glacières com a Rue Bout d"Arles, o bairro do meretrício da cidade.

Nada de muito anómalo por aquelas bandas: tinha havido um problema entre um homem e uma mulher e esta sentiu-se mal, desmaiara. O homem vivia nas imediações da esquadra e o inspector-chefe ordenou que o detivessem. Um jovem gendarme foi até à casa por volta das 7h15 da manhã seguinte. Ninguém atendeu, o jovem deu uma mirada sumária, chamou o chefe, Joseph d"Ornano, um corso de 45 anos há pouco empossado no lugar, onde já conquistara fama de honesto e justo.

Quando Ornano e os seus homens chegaram então à casa, já lá havia uma pequena multidão de curiosos em redor. Passada a porta, um cheiro acre, das tintas e da terebentina. Espalhados pelo chão ou colocados nas paredes, quadros muito coloridos, e acolá um cavalete, pincéis e paletas, uma caixa de café, outra de tabaco, loiças baratas, um cachimbo corroído. No meio daquela barafunda toda, subiram as escadas para o andar de cima, deram com o quarto, envolto na penumbra. Ornano disse a um dos subordinados para abrir as portas e a luz da rua banhou um vulto enrolado sobre si próprio, o corpo de um homem em posição fetal, com a cabeça apoiada num monte de toalhas. Estava coberto de sangue, havia sangue por toda a parte, nos lençóis, nas toalhas, nas mãos do homem, no chão do quarto.

No quarto ao lado, uma cama intacta, com os cobertores alinhados, prova de que ninguém aí dormira na noite passada. Por volta das oito da manhã do dia 24 de Dezembro, e enquanto o chefe Ornano e os seus polícias inspeccionavam aquela casa amarela, um homem ruivo e possante foi visto a atravessar às pressas o parque da cidade. Quando chegou à Praça Lamartine, perto da casa que partilhava com um colega neerlandês, viu uma multidão posta na rua, sedenta de curiosidade. Para Ornano e para a polícia, o caso não fora difícil, o criminoso era óbvio. Às primeiras horas da manhã da Véspera de Natal de 1888, o pintor Paul Gauguin era detido, sob suspeita de ter assassinado Vincent Van Gogh.

Assim começa o livro de Bernardette Murphy, assim começou a sua demanda. Odisseia que durou vários anos, que consumiu todas as suas horas e os seus minutos, que jamais lhe saiu do espírito, que a manteve alerta, obsessivamente alerta, a tudo quanto pudesse dizer respeito àquela bizarra noite de 23 de Dezembro de 1888. Sobre esta já se havia escrito muitíssimo, quilómetros de tinta, e até feito filmes, séries, dezenas de documentários. Aparentemente, tudo havia sido dito e descoberto sobre a passagem de Van Gogh por Arles, que o pintor, aliás, deixara registada em diversos quadros e na abundante correspondência trocada com o irmão Theo, que o apoiou e protegeu de uma forma comovente e constante, também ela obsessiva. Não havia, por isso, grande motivo para que Bernardette se interessasse por esta história, estudada e escrutinada ao milímetro, investigada pelos maiores especialistas, conhecida do mundo inteiro. O excesso de informação e de pistas seria, aliás, das principais dificuldades com que teve de lidar; a outra, maior ainda, foi a ausência de informação credível, da época, tomada em primeira mão.

É certo que o caso havia sido acompanhado pelas autoridades, primeiro as policiais, depois as sanitárias, pois o pintor holandês acabara internado, em agonia mental. Simplesmente, Van Gogh era um ilustre desconhecido, um homem vindo de longe, que pintava quadros a óleo, igual a tantos outros que então buscavam a luz e o sol provençais. De concreto e fidedigno, escrito naquela altura, com testemunhos directos, sem contaminações posteriores, não havia quase nada. Mais tarde, Gauguin, o amigo detido, contaria o sucedido, mas fê-lo em duas ocasiões diferentes, com versões também diferentes, contribuindo a seu modo para adensar o mistério e aumentar a confusão. Quando tanto se havia escrito e dito, do essencial, afinal, sabia-se muito pouco: quem fora a prostituta Raquel, a quem Van Gogh dera uma parte da sua orelha esquerda? Onde morava o pintor, qual a casa do bordel fatídico? Cortou ele a orelha toda ou apenas uma parte, somente o lóbulo? Quem foram aqueles que, depois, fizeram um abaixo-assinado, dizendo que o não queriam a morar na cidade? E antes de tudo, acima de tudo, qual a razão daquela mutilação?

A primeira dificuldade foi cartográfica ou, se quisermos, topográfica: em Junho de 1944, Arles fora severamente bombardeada pelos Aliados; em poucos minutos, foi devastada a cidade que Van Gogh conhecera, com especial incidência na zona em que ele vivera. Tudo desa- pareceu: os cafés que frequentava, o primeiro hotel em que ficara hospedado, os bordéis que visitava, até a célebre Casa Amarela, no nº 2 da Place Lamartine. Bernardette teve de fazer um paciente trabalho de reconstituição, rua a rua, casa a casa, usando mapas antigos, guias turísticos, duas fotografias aéreas tiradas em 1919.

Depois, num passo ainda mais ambicioso, houve que encher aquelas ruas de gente, saber quem eram e o que faziam os contemporâneos de Van Gogh na Provença. Para termos uma noção da empreitada, ao longo de muitos meses, talvez anos, Bernardette Murphy desenvolveu uma base de dados com mais de 15 mil entradas (!) com os nomes, as ligações familiares, as profissões, os endereços dos habitantes de Arles em 1888. Para o efeito, teve de consultar arquivos civis e paroquiais, registos de nascimento e baptismo, certidões de casamento e óbito, fichas dos hospitais, listagens feitas pela polícia, com os nomes das filles soumises, o eufemismo das prostitutas, e os seus limonadiers, os proxenetas ou as patroas dos bordéis.

A narrativa de Van Gogh"s Ear cruza, de uma forma apaixonante e extraordinária, os passos do pintor holandês, hora a hora, minuto a minuto, e os da sua investigadora, travando lutas titânicas com o pessoal dos registos e dos arquivos, em requerimentos para cá e para lá, buscas em armários poeirentos, dias passados a ler os jornais da época. Por sorte ou azar, Bernardette pesquisou em terras de França: sorte, pois a máquina de l"État, sobretudo em Oitocentos, tudo registava e compilava, apoiada num corpo vasto de funcionários; azar, pois a mesma majestade burocrática que tudo recenseara era a mesma que agora, cem anos volvidos, lhe negava o acesso ao saber acumulado e aos intangíveis arquivos, protegidos por mil e uma leis de segredo.

Teve um aliado de peso, no Museu Van Gogh de Amesterdão, que lhe facultou documentos raros, aí legados pela família, os quais confirmavam o óbvio: Vincent Van Gogh fora, desde criança, uma personalidade singular, nascida numa família também ela singular - dos seis filhos do Reverendo Van Gogh e da sua mulher, dois cometeriam suicídio e outros dois morreriam internados em asilos. Desde novo, Vincent teve uma compaixão obsessiva pelos mais fracos e desafortunados, mostrando, do mesmo passo, uma absoluta incapacidade para se relacionar com mulheres: quando se apaixonava, perseguia o objecto do seu amor de uma forma compulsiva, obsessiva, sem se importar com convenções sociais ou em saber sequer se era ou não correspondido. Em 1881, decidiu que estava apaixonado pela sua prima Kee Vos, que recentemente ficara viúva, e apareceu inopinadamente em casa dos pais dela (que não só não tinha interesse nele, como não tinha quaisquer intenções de voltar a casar-se); fez uma cena, pegou num candeeiro a petróleo e pôs-se a queimar a própria mão, recusando-se a tirá-la enquanto os pais de Kee não o deixassem vê-la. Mais tarde, em 1884, apaixonou-se, também perdida e obsessivamente, por uma vizinha, Margot Begeman, a qual, pese a oposição das duas famílias, iniciou um relacionamento com ele, que culminou com Margott a ingerir veneno, numa desesperada tentativa de suicídio.

Foi mais ou menos por essa altura que Vincent, que desenhava e pintava desde criança, começou a trabalhar mais seriamente nos seus quadros, o primeiro dos quais, Os Comedores de Batatas, pintado em Abril de 1885, é, literalmente, uma obra-prima. Após uma passagem pela Bélgica, de onde partiu crivado de dívidas e com contas por saldar, esteve em Paris, depois desembocou na Provença, tudo a expensas do irmão Theo. Não se sabe por que escolheu Arles, em detrimento de outras opções mais óbvias, como Marselha, asseverando alguns que tal se deveu à beleza das mulheres locais, as míticas arlésiennes, retratadas por Degas e Toulouse-Lautrec, que podem ter-lhe sugerido a visita. Mistérios que, cem anos depois, ocupariam os trabalhos e os dias de Bernardette Murphy, mergulhada nos arquivos de França e do Museu Van Gogh, onde, à falta de outras fontes, esquadrinhou minuciosamente os espólios dos que haviam escrito sobre o pintor dos girassóis: Gustave Coquiot, o seu primeiro biógrafo francês, que nos Anos 1920 ainda conseguiu entrevistar alguns moradores de Arles que haviam conhecido aquele holandês maluco; e Irving Stone, que em 1934 publicara Lust for Life, uma popularíssima biografia romanceada, adaptada ao cinema em 1956, com Kirk Douglas no papel principal.

"Tudo, praticamente tudo, o que de bom e de mau tem acontecido à Humanidade desde o início dos tempos tem sido fruto de taras ou manias compulsivas, das idées fixes de impérios, nações ou de indivíduos, que tanto querem conquistar a Rússia ou abocanhar a Ucrânia, como descobrir a cura para o cancro, ir à Lua ou a Marte, inventar a luz eléctrica e agora esta maldita Inteligência Artificial."

No drama de Dezembro de 1889, houve uma personagem-chave, o Dr. Félix Rey, um jovem médico que tinha acabado de ser colocado no hospital onde Van Gogh foi internado por causa da ferida auto-infligida. Foi ele que o salvou, utilizando métodos modernos de cauterização que evitavam infecções letais. Irving Stone falara com Rey, trocara cartas com ele, obtivera até um esquisso da orelha do pintor, que, por um bambúrrio de sorte, e também muita porfia, Bernardette conseguiu localizar nos papéis do escritor, guardados na Califórnia.

Através desse esquisso, cruzado com outras fontes, Bernardette pôde fazer o retrato - arrepiante, diga-se - do golpe que, com uma lâmina de barbear e defronte de um espelho, Van Gogh deu na sua orelha, um golpe muito mais extenso e profundo do que a mais light "teoria do lóbulo" sempre pretendeu fazer crer. Isso, a juntar ao ar andrajoso com que se autorretratou no final da vida, suscita ainda maior compaixão pela sua tragédia íntima, tanto mais que, como sublinha Bernardette Murphy, e ao contrário do que a ideia do "louco Van Gogh" faz crer, Vincent era um homem que, em Bruxelas e Paris, gostava de se vestir com aprumo e elegância e que, mesmo na Provença, se dava alguns ares de dândi.

Outra tese aqui posta em causa era a que defendia que Vincent tinha visto uma corrida de touros em Arles e, em resultado disso, decidiu oferecer a sua orelha a uma prostituta, como presente de Natal, tal qual os matadores faziam às damas no final das suas faenas. Bernardette foi ver à lupa os calendários das touradas na Camarga (!), concluindo que era impossível o pintor ter ido a qualquer corrida; na sua correspondência diz, é certo, que viu muitos touros no campo, mas não fala em lides, nem em arenas.

Outros dois mitos desfeitos: por um lado, e ao contrário do que por vezes se diz, Gauguin e Van Gogh não eram íntimos, nem sequer amigos, tratavam-se por "você", não por "tu»" e mal se conheciam antes de partilharem casa, facto que, aliás, pode explicar os violentos confrontos que aí tiveram e o modo abrupto como Gauguin se pirou de Arles; por outro lado, e também ao invés da imagem feita de um pintor aluado e solitário, Van Gogh relacionou-se de perto com outros aspirantes a artistas - ia pintar com eles para o campo, em alegres patuscadas, como sucedeu com o americano William Dodge Macknight, o dinamarquês Mourier-Petersen e o belga Eugène Boch, herdeiro das cerâmicas e vidros Villeroy & Boch.

Outro mito: Arles não era um lugarzinho idílico da bela Provença, rodeado de alfazemas e flores; era, isso sim, uma terra suja, "a terra mais suja do sul", nas palavras de Gauguin, em que os dejectos eram lançados no Ródano ou, pior ainda, seguiam a prática medieval do tout à la rue. No tempo de Van Gogh, a cidade tinha oito prostíbulos legalizados, sem contar com os clandestinos, agrupados numa zona própria, onde também existia uma Casa das Carmelitas, com os previsíveis conflitos de vizinhança. O pintor frequentava regularmente essas "Casas de Tolerância", em "visitas higiénicas", como eufemisticamente dizia ao irmão Theo. Em Março de 1888, pouco antes de Van Gogh chegar, tinha havido um desacato grave entre uns imigrantes italianos e uns soldados zuavos, do qual resultara a morte de dois destes. Tudo muito diferente da imagem luminosa e bucólica que temos do sul da França, sobretudo naquela época.

O ficheiro que Bernardette Murphy criou - recorde-se, com mais de 15 mil entradas - permitiu-lhe isolar três ou quatro nomes de candidatas, a "Rachel", a prostituta que desmaiou quando Van Gogh lhe ofereceu a sua orelha. Cruzando muitas outras fontes, e ao fim de dezoito meses de batalha com os arquivistas franceses, que teimavam ter colocado toda a informação online, insistindo ela, com razão, que os resultados do Censo de 1890 permaneciam em falta, foi possível ir mais longe, chegar a um só nome, "Gaby", Gabrielle Berlatier. Localizou o seu neto, falou com ele, reconstituiu a sua vida pari passu. Contudo, havia dados estranhos: "Gaby" tinha-se casado com um homem da terra, o que não era muito provável sendo prostituta; por outro lado, era ainda menor em 1888, sendo também improvável que Virgine Chabaud, a Madame de quase todos os bordéis de Arles, corresse o risco de empregar uma adolescente num meio tão pequeno e controlado. Pior ainda: "Gaby" tinha uma horrível cicatriz no braço, fruto do ataque quase mortal de um cão raivoso, ocorrido antes das vacinas do Dr. Pasteur.

A informação reunida, de que aqui só se dá sumária nota, permitiu a Bernardette reconstituir o sucedido: "Gaby" era uma jovem empregada de limpezas no bordel nº 1, Van Gogh conhecia-a, apiedara-se da sua condição, condoera-se com a cicatriz horrível e, na noite de 23 de Dezembro de 1888, depois do seu gesto louco, encontrou-a na rua (não no interior do bordel) e deu-lhe a sua orelha esquerda, acto que teve, entre o mais, fortíssimas conotações religiosas, como sucedia em todos os ataques que o pintor sofria, povoados de visões místicas.

A descoberta maior, que pôs em causa o que sempre disseram creditados especialistas (por exemplo, Martin Gayford, autor de A Casa Amarela. Van Gogh, Gaugin e Nove Turbulentas Semanas em Arles, publicado entre nós pela Bizâncio, em 2007), seria, porém, a seguinte: durante décadas, Arles carregou a vergonha de os seus habitantes, em peso e em massa, terem ostracizado Van Gogh através de um abaixo-assinado dirigido às autoridades; Bernardette mostrou que, ao invés de um sobressalto cívico, tudo não passou de uma tramoia imobiliária. Dos poucos que assinaram a petição de expulsão, quase todos estavam ligados a duas personagens apenas: Damase Crévoulin, dono da mercearia ao lado da Casa Amarela, que não queria os gritos de um pintor louco, ademais estrangeiro, a afugentar-lhe a clientela; e Bernard Soulè, um agente imobiliário que já havia trespassado a Casa Amarela para uma tabacaria, quando Van Gogh, graças ao irmão Theo, tinha as rendas adiantadas, não podendo ser despejado.

A nós, pode parecer-nos uma irrelevância, uma minudência, mas esta querela perseguiu os arlesianos durante décadas, sendo talvez o motivo pelo qual, até aos Anos 1980, a cidade nunca evocou grandemente o pintor. Quanto a este, e à sua tara, Bernardette fala de epilepsia e culpa a linha familiar materna, prenhe de problemas, mas é incapaz de dar uma resposta cabal àquela que é, no fundo, a grande e a maior questão, a razão daquela mutilação. Talvez ela se explique apenas numa e numa só palavra, nem sempre mágica e virtuosa: obsessão.

Historiador.
Escreve de acordo com a antiga ortografia.

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