Obrigatoriedade de vacinas: pistas de reflexão
Obrigatoriedade das vacinas covid? Como dizem os juristas, quid iuris?
Diversos países europeus têm determinado, ao longo do último ano, diferentes regimes de vacinação covid para os seus cidadãos, desde logo em função da situação profissional dos sujeitos em causa ou da possibilidade de acesso a diferentes espaços e serviços. Tal, diga-se, foi também verdade em Portugal, ao ser-se exigido certificado de vacinação ou de recuperação para acesso a diversos estabelecimentos, meios de transporte ou eventos ou, pelo menos, a realização de testes.
A realidade pandémica desde o início de 2020 veio colocar em relevo um conjunto de elementos adormecidos entre nós. As exigências vacinais de saúde pública, do ponto de vista do efetivamente requerido ao cidadão, eram até então relativamente "fracas" na sua fiscalização. Para além da vacinação primária das crianças, que no limite podia depender da vontade dos pais ou, na prática, mais até de exigências circunstanciais dos estabelecimentos de ensino, pouco mais era apercebido. Mas existe uma história anterior, que vale a pena ter em conta, para não sermos engolidos pela centrifugação e pela chantagem rápida do presente, num sentido ou noutro, e na dicotomia simplificadora entre "negacionistas" e "fascistas".
Para quem seja candidato a um serviço público continuará a ser exigido, desde 1962, uma demonstração de realização de vacinas obrigatórias. Aliás, ao abrigo de legislação dos anos 1980, e retomando simplesmente aí requisitos legais pelo menos de há duas décadas, exigia-se que um candidato a serviço público deveria assumir robustez física e perfil psíquico necessário e "ter cumprido as leis de vacinação obrigatória". Pode ver-se, aliás, neste âmbito, um parecer elucidativo do conselho consultivo da Procuradoria-Geral da República, de 25 de maio de 1995, suscitado pelas eventuais restrições e classificação da situação de uma pessoa contagiada com VIH no acesso à função pública, mas com uma reflexão mais alargada. O cumprimento exigido das "leis de vacinação obrigatória" mantém-se depois como requisito de candidatura a funções públicas no regime sucedâneo aprovado em 1998; e mantém-se hoje, no atual regime de trabalho em funções públicas, que obriga igualmente ao "cumprimento das leis de vacinação obrigatória", legislação de 2014, atualizada até em 2020.
Ou seja, pelo menos nas últimas seis décadas, existe vacinação obrigatória em Portugal. Apenas para o serviço público? Não. O que são afinal as "leis de vacinação obrigatória", essa expressão repetida há décadas? Consistem na obrigatoriedade das vacinas contra a difteria e contra o tétano, a primeira para as crianças e a segunda também para os adultos, de cinco em cinco anos, de acordo com o Decreto-Lei n.º 44198, de 20 de fevereiro de 1962, que se aplica a trabalhadores dos serviços públicos e a outros que exerçam atividades muito determinadas: desde logo como a de "abegão", "almocreve", "moço de forcado", "pessoal de circo de variedades", "guarda-florestal" ou trabalhador da construção civil (assim o diz a Portaria n.º 19058, de 3 de março de 1962, ainda hoje em vigor...), não apresentando "certificado médico comprovativo de contraindicação". Abegões portugueses, atentai nas vossas obrigações quinquenais...
Será agora de adicionar a vacina covid-19 a esta lista muito restrita de vacinação obrigatória, que se manteve inalterada nos últimos 60 anos, apesar de muitas outras vacinas terem surgido entretanto? E que restrições criar para eventuais não vacinados? E como compatibilizar uma vacinação obrigatória adicional com princípios fundamentais, desde logo de igualdade, de acesso ao trabalho e de privacidade de dados relativos à saúde? Será talvez em função do efetivo sucesso vacinal em Portugal em 2021 e, especialmente, para não acicatar o monstro autoritário que todos temos dentro de nós - e mais em ainda em grupo... - de mostrar prudência no tema. A saúde pública e a capacidade de resposta dos serviços de saúde são elementos ponderosos na análise, mas o respeito pela decisão individual, especialmente quando informada, é ainda o melhor antídoto contra os abusos do poder, de qualquer poder e em qualquer tempo, sempre bem-intencionado ou como tal vendido.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa