O voo da tartaruga

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Quem pensa que as tartarugas não voam, tão-só por não terem asas para voar, é porque não viram nem souberam perlustrar o que eu pude observar.

Garanto-vos que contemplei, com os meus próprios olhos, facto também presenciado pela minha mulher e por um casal amigo, a pequenina tartaruga Olive Ridley a voar na praia de Benaulim, em Goa, bem cedinho de manhã, no dia 14 de Março de 2024.

Conto-vos essa história, porque estava e continuo a estar fascinado, alegre e feliz, por ter assistido a um verdadeiro milagre da natureza.

Aquele voo da tartaruguinha, recém-nascida, com cerca de 5 centímetros de comprimento, era por demais gracioso. Sendo lindo de pasmar, não só era elegante nos gestos e perspicaz nas intenções, como também dotado de uma força poderosa, capaz de ultrapassar as maiores dificuldades e romper todas as barreiras existenciais.

Nos seus movimentos firmes e resolutos, denotava-se que tinha objectivos por cumprir, claramente definidos, daí avançar com destemor, indiferente aos perigos por enfrentar.

Admito que os meus três companheiros da praia, por estarem talvez ainda um tanto ensonados, não a tenham visto voar, mas esse problema não é meu, é só deles, pois a minha habilidade ímpar e visão privilegiada é facilmente explicável.

Sem falsa modéstia, por força das circunstâncias ou por vontade desconhecida, sei que eles não possuem os mesmos olhos com que a natureza me dotou, com os quais posso enxergar, com clareza cristalina, aquilo que os outros não conseguem ver, por mais que o tentem fazer.

Caro leitor, depois destas minhas tiradas despropositadas e presunçosas, que apenas em texto ficcional é permitido escrever, em jeito de brincadeira, só me resta proclamar e dizer em voz alta, saudando o 25 de Abril:

Viva a liberdade de pensamento e a capacidade de imaginação!

Analisando a avidez dos movimentos daquele ser minúsculo, com cerca de 5 centímetros de comprimento, deu para conjecturar o longo caminho percorrido para chegar até àquele lugar decisivo, onde a vida e a morte se cruzavam, jogando aos dados, para determinar o seu futuro.

Não participara na arribada, o tal famoso ritual de nidificação em massa, que acontece em alguns locais do globo terrestre como, por exemplo, em Orissa, na Índia, bastante mais ao norte da costa oposta de Benaulim, com milhares de tartarugas a invadirem a praia, redundando em espectáculo grandioso, registado em numerosos vídeos e fotografias maravilhosas tiradas por cientistas, vindos de todas as partes do mundo, para estudar este tipo de acontecimentos singulares.

Não, não foi isso que aconteceu, a tartaruguinha Olive Ridley enfrentara sozinha o porvir, numa praia quase deserta frequentada, sobretudo, por seus inimigos declarados, sempre à espreita de uma oportunidade para devorar os incautos.

Desconhecia a hora certa em que se dera o seu nascimento. Admitia que teria ocorrido entre as cinco e seis horas de manhã, quando o sol ainda tentava romper as nuvens escuras para lançar a sua luz brilhante e clarear essa parte do universo, onde iria apresentar-se ao mundo.

Recordava-se que, depois de fazer um redobrado esforço, conseguira libertar-se da casca do ovo, que a encobria, onde permanecera durante cerca de 42 dias, e abrira os olhos para perscrutar o ambiente envolvente.

O instinto, transmitido de geração em geração, dizia-lhe que, como a luz do firmamento ainda era uma miragem, as cobras podiam andar por ali, prontas para matar a fome nocturna, servindo-se dela para o seu pequeno-almoço.

Subitamente ouviu um rastejar longínquo, acompanhado de um som esquisito, a aproximar-se do local onde se encontrava. Calculou não ter sido provocado pelo vento, devia ser algum animal que se movimentava, de forma sorrateira, por entre a erva ressequida, aproximando-se cada vez mais das tartaruguinhas acabadas de nascer.

Muito mais depressa do que esperava, quando o bicho rastejante chegou ao local, o pânico instalou-se de imediato, apoderando-se de todas aquelas criaturas inofensivas e indefesas. Foi um autêntico salve-se quem puder, uma debandada geral, de todos em conjunto e de forma desorganizada, com quase uma centena de recém-nascidos a fugirem, o mais rápido possível, para não serem engolidos pela maldita cobra esfomeada e devoradora.

Na sua fuga precipitada, chocou com suas irmãs ou irmãos, não sabia bem ao certo, quase perdendo o sentido de orientação. Pela sua reacção imediata e espontânea, logo no dealbar da vida, provou a si própria que o instinto de sobrevivência era muito mais forte do que o medo da morte.

Assim que se afastou do local, marcado com o infame selo da morte, quis parar para reflectir, mas estava proibida de dar-se a esse luxo, pois a sua vida corria perigo e ela necessitava de continuar a caminhar em direcção ao oceano, tal como principiara a fazer, guiada pela intuição.

Acalmou-se um tudo-nada quando ouviu, com mais nitidez, o auspicioso som das ondas do mar. Era para aí que se devia dirigir. A água do mar chamava por si. Pedia-lhe para acelerar o passo, correr, galgar distâncias, fazer de tripas coração, até conseguir beijar as gotas oceânicas que se encaminhavam na sua direcção para a receber em festa e de braços abertos.

Contudo, o infortúnio batera à sua porta e, em vez de ser bafejada com a sorte de poder progredir no período de maré alta, infelizmente, na altura em que essa ocorrência sucedera, era a maré baixa que ditava as suas normas, fazendo recuar as águas do caminho que tinha de percorrer, aumentando assim a distância a transpor até encontrar a imensa porta da entrada do mar da salvação.

Não podia haver tempo para hesitações nem paragens para poupança de esforços. Cansaço era uma palavra que não podia fazer parte do seu vocabulário. Menos ainda o desespero, superação sim, resiliência também. Era imperioso avançar, sempre em frente e sem esmorecer, até atingir o objectivo programado por gerações de familiares precedentes.

A nossa tartaruguinha Olive Ridley, assim chamada por causa da cor de azeitona da sua carapaça, em forma de coração, avança destemidamente e em grande velocidade em direcção ao mar.

Constata que, entretanto, a luz solar iluminara o seu caminho. Agora já podia ouvir e ver o mar. O coração pulava de alegria. Estava ali, bem perto, era só correr na sua direcção.

Assim que acelera ainda mais o andamento, ouve o crocitar de uma gralha e a sombra das suas asas a esvoaçarem mesmo por cima de sua cabeça.

Com movimento instintivo, encolhe-se toda e recolhe rapidamente a cabecinha. As patas dianteiras e traseiras, sem receberem nenhuma ordem expressa, cumprindo a sua obrigação, protegem-se, num ápice, debaixo da resistente carapaça.

A gralha desce lá do alto e aproxima-se dela. Pica e torna a picá-la, mas a carapaça resiste às picadelas. O tempo corria contra a nossa heroína e a gralha, teimosa e persistente, aguardava que a criatura se cansasse e baixasse a guarda, cometendo algum descuido.

A paciente tartaruga resistiu durante certo tempo, que parecia uma eternidade, até que ouviu o ladrar dos cães.

Nem sequer se tinha livrado da gralha e já outro perigo se avizinhava, este ainda maior e muito mais temeroso.

Os cães de criação assim como os vadios, que deambulam pela praia de Benaulim, como se fossem donos daquele espaço, são ciosos do território que dominam. Não admitem a presença de intrusos, nem de outros cães e muito menos de gralhas. Até parece que toleram a presença humana que, pelo sim, pelo não, muitas vezes andam armados empunhando, na mão, um respeitador pau.

Contrariamente ao espectável, no primeiro momento, a chegada dos cães, até parecia ter sido providencial, aparentava ter ocorrido para a salvação da nossa heroína, pois a gralha assustada levanta logo o voo, deixando a nossa protagonista em paz. Mas é sabido que esses animais são demasiado curiosos.

O primeiro que se aproximou daquela criatura minúscula, olhou para aquele ser vivo, cheirou o animalzinho e virou-lhe as costas, sem lhe dar a mínima importância. Todavia, o segundo foi mais bisbilhoteiro e maldoso. Quis saber se era comestível. Cheirou-o e tornou a cheirar com insistência. Insatisfeito consigo próprio, avançou com a pata direita, colocando-a em cima da carapaça da nossa heroína. Ela manteve-se quieta, imóvel como uma rocha.

O cão desconfiava, acreditava que debaixo da carapaça haveria algo para lhe matar a fome. Decidiu experimentar. Abre a boca e tenta morder a criaturinha, que devia estar a rezar, ardentemente, pedindo aos deuses marinhos que a viessem socorrer com urgência.

Trinca ao de leve e sem convicção, depois torna a cheirar. Empurra-a novamente, agora com a pata esquerda. Nada acontece.

Quando parecia que queria abocanhá-la e transportá-la para outro sítio, eis que um cão intruso tem a ousadia de entrar no seu território.

Furioso, abandona a nossa heroína e corre em direcção ao violador do seu espaço. Queria ajustar contas, impor-se e obrigá-lo a fugir. Atira-se contra o intrometido e ataca-o sem dó nem piedade.

Enquanto os dois lutam, os cães da vizinhança aproximam-se deles, uns apoiando o desconhecido, outros o seu chefe.

A aflita tartaruguinha ouve o latir dos cães, o grito doloroso do vencido e o clamor do vencedor. Pelo distanciamento do som, sente que o perigo se afastara. Agora poderia recomeçar a sua marcha em direcção ao oceano.

Quando estava a poucos metros de atingir o seu objectivo é descoberta por meu amigo, que me chama para presenciar aquela inolvidável ocorrência.

Connosco à sua volta, estava salva dos predadores. Com um derradeiro esforço iria atingir as águas do oceano. Procurámos não interferir, nem ajudá-la a chegar até ao mar, apenas quisemos protegê-la dos predadores. Aliás, era uma espécie protegida, disse-me aquele meu amigo, mas os protectores e os vigilantes, se é que existiam, não impediram que ela sofresse a bom sofrer, na sua odisseia matinal, a ponto de estar prestes a ser comida.

Quando entrou na água, apeteceu-me bater palmas, mas o silêncio foi muito mais elucidativo do respeito que tínhamos por aquela minúscula criatura.

Uma onda maior atirou-a novamente para a terra, - a sua enorme prisão sem grades -, onde teve que lutar, titanicamente, para sobreviver durante o primeiro período de sua existência.

Incansável, corajosa e perseverante, absolutamente segura da virtualidade da sua decisão, sem hesitar um instante, dirigiu-se novamente para o mar.

Foi nesse momento sublime, maravilhoso e inesquecível, que eu vi, com os olhos espantados e lacrimejantes, a nossa heroína mergulhar e tomar o caminho da liberdade, voando, por entre as águas do oceano, para desfrutar os merecidos encantos da natureza.

Historiador
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

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