O Velho Hamurabi diria: já nem a lei de talião respeitam!

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O Código de Hamurabi, formulado na Babilónia e recopiado por outras culturas do passado, incluía o princípio que depois a história chamou de lei de talião: olho por olho, dente por dente. Isso aconteceu há quase quarenta séculos. Entretanto o mundo mudou, nomeadamente na regulamentação dos conflitos armados. Agora, a referência é a lei humanitária internacional, a designação genérica das leis imperativas da guerra nos tempos modernos. Visa essencialmente proteger as populações civis e reconhecer um certo número de direitos no tratamento dos combatentes e dos prisioneiros de guerra. É habitual referir-se à lei humanitária internacional como as “Convenções de Genebra”. Trata-se, mais precisamente, de um conjunto de tratados que consolidam princípios desenvolvidos a partir do final do século XIX, a que se juntaram outros, após a Primeira e a Segunda Grandes Guerras, com relevo para a IV Convenção de 1949, bem como para os protocolos adicionais de 1977 e o de 2005.

Os Estados têm a obrigação estrita de cumprir a lei humanitária internacional bem como proteger as pessoas sob a sua autoridade, incluindo as residentes em territórios temporariamente ocupados. Quando não o fazem devem ser julgados por esses incumprimentos, alguns dos quais são à face da lei crimes de guerra ou de genocídio. A captura de reféns, a destruição massiva de infraestruturas e de bens materiais ou habitações, sem justificação militar incontroversa, a deportação, a expulsão em massa, a transferência forçada ou o confinamento e o bloqueio de populações adversas são atos ilegais gravíssimos, como também o são o bombardeamento indiscriminado de áreas civis e de pessoas não-combatentes.

Nada justifica essas violações. E não há espaço para que se invoque a questão da legítima defesa. A legítima defesa tem regras precisas, limites bem definidos e não pode ser confundida com o conceito de vingança ou expressões de ódio e de racismo. As violações são crimes que caem sob a alçada da lei internacional. E os Estados terceiros que colaborem na sua prossecução têm de ser vistos como cúmplices. Por isso, a maioria dos países aprovou legislação que proíbe o fornecimento de armas a um Estado que esteja, suposta ou provadamente, a cometer crimes desses. Se estiver em curso um acordo de ajuda militar ou de venda de equipamento bélico, esse acordo deve ser suspenso até à resolução da crise. Não pode se invocado como uma obrigação legal para justificar a manutenção do memorando por parte de quem fornece o equipamento, a assistência, a cooperação ou o treino militar.

O Código de Hamurabi lembra-nos o chamado direito de retaliação em tempos antigos: olho por olho. Farei duas observações sobre o assunto, um tema que é bastante delicado.

As Convenções de Genebra tendem a considerar os atos de retaliação como ilegais, sobretudo se tomarem a forma de ataques indiscriminados, causadores de muitas vítimas inocentes. A doutrina e a diplomacia aconselham que qualquer ação desse tipo deve ser bastante limitada no tempo e nos objetivos, e deve ser anunciada previamente. Não pode, de modo algum, ganhar a dimensão de uma punição coletiva ou desproporcionada, nem conduzir a uma escalada do conflito. Também não pode ter uma dimensão preventiva, ou seja, ser absurdamente esmagadora com a justificação de que assim se evitarão novas intervenções do inimigo.
A segunda observação é que Hamurabi era no passado muito mais equilibrado que muitos o são hoje. A sua regra não pressupunha a destruição do território do inimigo, nem a morte de um número incalculável de vítimas – digo incalculável, por não se saber quantos habitantes morrem, para além dos tiros e das bombas, por falta de tratamento médico, de medicamentos, por causa da qualidade da água, da fome, ou da destruição dos sistemas de higiene pública. Hamurabi limitava-se a um olho, à reciprocidade. Não deveríamos, em 2024, ser mais ferozes que os babilónios o eram cerca de 1750 anos antes da nossa era.

Ao invés de muitos leitores, Hamurabi também não me perguntaria para que servem as Nações Unidas, caso vivesse hoje. Entenderia a razão de ser de uma organização que consegue reunir todos os Estados do universo e ma–nter um certo nível de credibilidade. Mas, enquanto homem de leis, não entenderia de modo algum a demora – já lá vão 145 dias! – na emissão dos mandatos de captura urgentemente solicitados a 20 de maio pelo procurador do Tribunal Penal Internacional.

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