O valor da vida humana na era da intolerância

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O assassinato, a sangue frio, do CEO da seguradora norte-americana UnitedHealthcare, à porta de um hotel em Manhattan, está a gerar debate nos dois lados do Atlântico. Segundo as autoridades, o alegado homicida, Luigi Nicholas Mangioni, é um jovem de 26 anos oriundo de uma família abastada de Maryland, que estudou numa universidade da chamada Ivy League e era, por todos, considerado inteligente e promissor. Mas o que realmente  choca não é o facto de o crime ter sido praticado por um jovem com estas caraterísticas, mas sim a forma como o crime foi celebrado nas redes sociais por muitas pessoas que o consideraram uma justa retribuição pela forma como as companhias de seguros tratam os clientes num país onde não existe um serviço nacional de saúde universal e tendencialmente gratuito.

De acordo com a imprensa norte-americana, quando foi detido, Mangioni tinha consigo um manuscrito de três páginas onde assume a autoria do crime e explica as suas razões. “Estes parasitas estavam a pedi-las”, dirá o documento, numa referência às companhias de seguros de saúde norte-americanas.

Segundo o Wall Street Journal, há alguns meses o suspeito publicou online uma crítica ao célebre manifesto “A sociedade industrial e o seu futuro”, de Theodore Kaczynski, mais conhecido como o “Unabomber”. Nessa avaliação do texto do bombista - que, ao longo de 17 anos, matou três pessoas inocentes e feriu outras 23 para protestar contra a sociedade moderna -, Mangioni concluía que, “quando as outras formas de comunicação não resultam, a violência torna-se necessária para sobreviver”.

Felizmente, a maioria das pessoas que defende determinadas causas não recorre à violência contra outros seres humanos, até porque os sociopatas são uma pequena minoria da população. Mas é inegável que estamos num mundo em que muitos consideram justificado o recurso à violência, mesmo que se viva em democracia e Estado de Direito.

Temos, de resto, assistido a um aumento da intolerância nas sociedades ocidentais, com uma crescente incapacidade de aceitar quem pensa de forma diferente. A cultura do cancelamento, as perseguições que grupos de extrema-esquerda e de extrema-direita fazem a quem lhes faz frente, os ataques ad hominem e de desinformação contra adversários políticos, espalhando rumores (geralmente com um pequeno fundo de verdade, de modo a tornar a mentira mais credível), ou os protestos ditos não-violentos que incluem o lançamento de tintas ou os atos de vandalismo sobre obras de arte são reflexos, a diferentes níveis, deste tipo de mentalidade.

Os jovens, que geralmente têm uma tendência natural para abraçarem de alma e coração as causas que consideram nobres, podem tornar-se presas fáceis dessa cultura de intolerância que, se não for combatida, a prazo colocará em causa a coesão social e a própria democracia. Afinal, o que vale uma vida humana, quando pesada contra a salvação da Humanidade? Nada, dirão alguns. Tudo, na verdade.

Diretor do Diário de Notícias

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