O terramoto
Os sinais estavam à vista. Pedro Nuno Santos começou por reagir bem ao caso Spinumviva, recusando colocar-se numa situação em que pudesse ser responsabilizado pela queda do Governo de Luís Montenegro. Porém, poucos dias depois, o líder do PS deixou-se enredar e mordeu o isco. Se fomos a votos neste domingo e o PS foi esmagado, foi porque Montenegro precisava de legitimar a sua continuidade à frente do Governo e Pedro Nuno, de forma temerária, fez-lhe a vontade.
No início, o Chega começou por ser um fenómeno que dava muito jeito ao PS de António Costa. O papão da extrema-direita era algo que o antigo primeiro-ministro utilizava com mestria para condicionar o PSD. Porém, o “não é não” de Montenegro, que como todas as promessas políticas deve ser interpretado com sabedoria, veio mudar as regras do jogo. E o resultado das eleições deste domingo, com o Chega praticamente empatado com o PS (tudo indica que houve transferência direta de votos dos socialistas para o partido de André Ventura), não deixa dúvidas. É um terramoto político. De agora em diante, o líder do Chega será a principal figura da oposição e quem passa a estar condicionado é o PS.
A AD, que representa a direita moderada e europeísta, surge como a única força política com mais força que o Chega. O PS está entre a espada e a parede: se não viabilizar o Governo da AD, estará a entregar o país ao Chega, numa altura em que Portugal acompanha uma tendência internacional de forte subida de movimentos populistas e antieuropeus. Por outro lado, o PS está dependente da boa vontade do PSD em vários dossiês, uma vez que, pela primeira vez em meio século, a direita tem uma maioria de dois terços na Assembleia da República. O PS colocou-se a si próprio numa situação em que ou se entende com a AD, ou esta última irá procurar acordos à direita, incluindo para a nomeação do governador do Banco de Portugal, a escolha dos juízes do Tribunal Constitucional e outras matérias onde, durante décadas, os dois partidos partilharam poderes e responsabilidades. Abrindo caminho, inclusive, a uma eventual revisão da Constituição decidida à direita, à margem do PS. Esta dinâmica de poder foi reconhecida, aparentemente, pelo próprio líder demissionário do PS, Pedro Nuno Santos, no seu discurso de ontem, quando admitiu que o próximo secretário-geral poderá ter de se entender com Montenegro.
Os partidos não são dos seus dirigentes. Não são, sequer, dos seus militantes. Os partidos devem estar ao serviço do país. No caso do PS, trata-se de um partido que tem desempenhado um papel central na democracia portuguesa desde 1974. O melhor que o PS pode fazer, neste momento, é reorganizar-se com uma nova liderança, sarar as feridas e preparar a próxima batalha, sob pena de vir a seguir o caminho do PS francês ou do SPD alemão.
De resto, as experiências de outros países europeus são importantes lições a ter em conta neste momento. Tanto no caso da Alemanha, como de França, muito como reação à imigração, os partidos populistas de direita tornaram-se mainstream. Apesar dos cordões sanitários, a RN de Marine Le Pen e a AfD alemã estão hoje fortemente implantadas em cidades e regiões que durante décadas foram bastiões comunistas. Já os socialistas franceses e o SPD alemão, que sempre ocuparam posições de primeiro plano, caíram para a terceira ou quarta posições. Na Alemanha, os democratas-cristãos de Merkel e Merz continuam a ser o maior partido, com o SPD a ver-se obrigado a aceitar ser o parceiro júnior da coligação governamental. Em França, o partido de Le Pen venceu as últimas legislativas, mas as regras do sistema presidencialista permitiram que, desde então, Macron nomeasse dois primeiros-ministros da sua escolha, numa crise política que se arrasta há longos meses e não tem ainda fim à vista.
Porém, por impressionantes que sejam os números do Chega, que teve de facto uma grande vitória, o vencedor destas eleições ainda se chama Luís Montenegro. A AD teve mais votos do que o PS e todos os partidos de esquerda juntos. Cresceu face às últimas eleições em votos e em mandatos e o PSD consolidou-se como o partido charneira da nossa democracia, uma posição que durante muito tempo foi ocupada pelo PS. Montenegro resistiu às vozes daqueles que, no PSD e na direita, defendiam um acordo com o Chega, porque percebeu que não seria o seu partido a engolir o de Ventura, mas o contrário. Compreendeu, também, que a maioria do eleitorado ainda se situa no espaço entre o centro-esquerda e o centro-direita - os resultados da AD e do PS nestas eleições comprovam-no - e, sobretudo, soube ler os sinais dos tempos e olhar para as preocupações das pessoas comuns, como se viu no tema da recente greve da CP, ou na questão da imigração. À semelhança do que sucedeu no resto da Europa, a imigração entrou em força na discussão política e teve consequências profundas no plano eleitoral. A política das manifestações de interesse, decidida pelo anterior Executivo socialista, deu origem a uma vaga migratória sem precedentes que virou contra o PS e o Bloco grande parte do eleitorado. Juntamente com o custo da habitação e a decadência dos serviços públicos (por exemplo, pela primeira vez em décadas, a mortalidade infantil está a aumentar), esta situação teve um profundo impacto junto de algum eleitorado que tradicionalmente votava à esquerda. Isto viu-se, por exemplo, no distrito de Braga, que assistiu a uma forte imigração nos últimos anos, que foi associada por alguns ao aumento nos preços das casas, e onde o PS e o Bloco sofreram fortes descidas nestas legislativas. Já a AD, nos 11 meses em que esteve no Governo, conseguiu retirar o tema da imigração da esfera do Chega e avançou com medidas que foram ao encontro do sentimento geral da população sobre o assunto. Montenegro apropriou-se, com habilidade, de algumas bandeiras do Chega, dando-lhe o “selo humanista” que as tornam aceitáveis perante algum eleitorado que não pretende votar no partido de Ventura, mas concorda com algumas das suas causas.
E agora? O próximo Governo será minoritário. Veremos até que ponto o forte crescimento do Chega terá impacto nas prioridades do novo Executivo. Provavelmente, a AD quererá ficar livre para poder falar com todos os partidos - incluindo o Chega - e fazer os entendimentos necessários no Parlamento. Mas sem coligações, uma vez que, se estiver coligada com a IL, a AD terá mais dificuldade em obter o apoio do PS para questões-chave. Esperemos que, independentemente destas novas dinâmicas, seja possível construir uma solução que assegure a estabilidade política de que o país bem precisa.
Diretor do Diário de Notícias