O tempo já não é o que era

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Dir-se-ia que as efemérides não se limitam a aconchegar a nossa nostalgia do tempo que passa - por vezes, são mesmo sobre o tempo que passa... Penso, assim, em mais uma data emblemática proposta pelo calendário: foi há 40 anos (3 de julho de 1985) que ocorreu a estreia de Regresso ao Futuro, o filme de Robert Zemeckis em que o jovem estudante Marty McFly viaja até ao ano de 1955 graças a uma invenção de Emmett “Doc” Brown, o seu amigo, bizarro cientista, que transformou um DMC DeLorean (modelo lendário dos automóveis americanos do começo da década de 80) numa verdadeira “máquina do tempo”.

A vocação mitológica do filme é por de mais evidente. E não apenas porque gerou uma das chamadas franchises que, para o melhor e para o pior, têm marcado Hollywood ao longo das últimas décadas (neste caso, houve duas sequelas, lançadas em 1989 e 1990). Para Michael J. Fox e Christopher Lloyd, intérpretes de Marty e “Doc”, respectivamente, este foi também um trabalho que, por assim dizer, “congelou” as suas imagens no tempo, independentemente das interpretações, melhores ou piores, que se seguiram nas suas carreiras.

Vale a pena retomar um possível paralelismo com um título da década anterior, Tubarão, de Steven Spielberg, cujos 50 anos estão, precisamente, a ser assinalados (a estreia ocorreu a 20 de junho de 1975). Pelos avanços que cada um dos filmes motivou na história dos efeitos especiais? Não necessariamente, até porque o filme de Spielberg resulta de uma proeza invulgar de produção em grande parte rodada num oceano nada virtual, enquanto a odisseia de Marty, tal como encenada por Zemeckis, não é estranha à herança clássica do melodrama.

Christopher Lloyd e Michael J. Fox: como medir o tempo?
Christopher Lloyd e Michael J. Fox: como medir o tempo?

Se ambos os filmes nos tocam para lá das circunstâncias de produção, e também da conjuntura histórica em que surgiram, isso resulta de uma contundência simbólica que não se desvaneceu. Tubarão é mesmo uma espécie de anti-fábula, já que a entidade redentora por excelência, a Natureza, surge agora representada por uma fúria animalesca que desafia a sobrevivência dos humanos. No caso de Regresso ao Futuro, a viagem de Marty a 1955 envolve uma contradição típica das narrativas de viagens no tempo - será que, recuando, se vai pôr em causa algo que já aconteceu? -, desta vez com um perturbante desvio familiar. Acontece que Lorraine (Lea Thompson), a jovem que será sua futura mãe se apaixona... pelo próprio Marty. Daí o imbróglio que ele tem para resolver: é preciso que Lorraine se apaixone por George (Crispin Glover), futuro pai de Marty, para que ele possa existir.

Regresso ao Futuro desenvolve-se, assim, como uma parábola familiar virada do avesso: a interdição do incesto paira como um fantasma da viagem de Marty, mas o seu motor dramático não é a pulsão sexual (a trilogia de Regresso ao Futuro distingue-se mesmo por uma curiosa neutralidade erótica), antes a instabilidade do tempo e, nessa medida, o equilíbrio histórico e mitológico de passado, presente e futuro.

Jogando com as datas e as temáticas do património de Hollywood, podemos também recordar que Regresso ao Futuro surgiu 30 anos depois da obra-prima de Nicholas Ray, Rebel Without a Cause/Fúria de Viver (1955). Aí ficámos a conhecer James Dean como figura, não apenas de uma nova matriz de representação (ligada ao Actors Studio), mas também, talvez mesmo sobretudo, modelo de um diferente entendimento da personagem do “adolescente” (“rebelde sem causa”, diz o título) e da sua inscrição no espaço da família.

Olhamos para Marty como um herdeiro incauto de todas essas convulsões, ele que, afinal, encontra em “Doc” uma compensação para o vazio afectivo em que vivem a mãe, dependente do álcool, e o pai, submetido à ditadura do seu patrão. Mesmo na sua fragilidade, o simbolismo é tanto mais sugestivo quanto Lorraine e George, os pais de Marty, fazem parte da juventude que, de alguma maneira, se reviu e redescobriu nas imagens de Fúria de Viver. Se acrescentarmos que James Dean morreu também em 1955, com apenas 24 anos, podemos reconhecer que as medidas do tempo se vão tecendo através dos seus próprios fantasmas.

Jornalista

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