O tempo e o modo
Foi em janeiro de 1963, completam-se agora sessenta anos. Nascia uma revista, dirigida por António Alçada Baptista, com uma equipa de jovens animados pela ideia de preparar a mudança no sentido da liberdade. Pretendiam, assim, lutar contra a geral "desordem estabelecida", "isentos de qualquer confessionalismo ou partidarismo político concreto, preocupados em localizar e fazer incidir a nossa análise, clarificação e resolução dos problemas que afetam o nosso tempo particular, propondo-nos especialmente (...) estudar com atenção crítica todas as formas de regressão e entrave a esse seu progressivo desenvolvimento, quer no que se refere à organização e governo da cidade, quer ao contexto sociológico, libertador ou opressivo, das expressões religiosas, culturais e económicas em que homem se move e o condicionam". O texto que abria a revista era propositadamente hermético. Havia que prevenir a ofensiva inexorável da censura. O que estava em causa era a reivindicação de um espírito livre e aberto e da necessidade de um diálogo crítico. A "desordem estabelecida" era uma alusão ao paradoxo de um regime baseado na "ordem", que não aceitava o pluralismo e o primado da lei. E a expressão fora usada por Emmanuel Mounier nas origens da revista Esprit, em 1932, para significar a demarcação relativamente a uma sociedade desrespeitadora da dignidade humana. O Tempo e o Modo nasceu com a inspiração de Esprit, cujos 90 anos agora celebrámos. Também como na revista francesa, a opção de António Alçada fora de não contar só com católicos, mas de unir crentes e não-crentes. Por isso, estiveram na fundação Mário Soares, Salgado Zenha e o jovem Jorge Sampaio. Daí estarem na capa da revista os nomes de dois futuros Presidentes da República. A Livraria Morais, aberta em 1958, sob a bandeira do inconformismo, envolveu jovens como Pedro Tamen, João Bénard da Costa, Nuno de Bragança, Helena e Alberto Vaz da Silva, que animariam a revista. O Concílio Vaticano II dava passos decisivos, a candidatura de Humberto Delgado abrira perspetivas novas, por romper com a unidade das Forças Armadas e o memorando do bispo do Porto a Salazar iniciou o fim do compromisso confessional do regime.
O título da revista vinha de uma coleção editora, batizada por Pedro Tamen: "A ação começa na consciência. A consciência, pela ação, insere-se no tempo. Assim, a consciência atenta e virtuosa procurará o modo de influir no tempo. Por isso, se a consciência for atenta e virtuosa, assim será o tempo e o modo". Aí se tinham publicado Emmanuel Mounier, o padre Manuel Antunes, Jacques Maritain e Pierre Fougeyrollas... Além, do mais, o número primeiro da revista, inseria um texto, tornado clássico, de um dos mais distintos filósofos do século XX, Paul Ricoeur - O Paradoxo Político. Aí se afirmava premonitoriamente: "Se a nossa análise do paradoxo do poder é exata, se o Estado é, simultaneamente, mais racional que o indivíduo e mais passional que ele, o grande problema da democracia é o do controle do Estado pelo povo". Estava tudo dito. Sem democracia e liberdade não seria possível construir uma sociedade humana.
E, logo em junho de 1963, num número especial, era feita uma pergunta sacramental e incómoda, mas necessária: "A Arte deverá ter por fim a verdade prática?". Hoje, a releitura dos muitos depoimentos mantém frescura e atualidade e Eduardo Lourenço, "maître à penser" da revista, na sua heterodoxia, afirmava. "Nas ruas de Florença se reaprende que o verdadeiro Paraíso é apropriação, ascensão, transfiguração da mais quotidiana e humilde verdade terrestre. (...) A existência da obra de Arte oferece a particularidade única de ser uma existência que não está certa da sua existência e ao mesmo tempo a existência mais resistente na sua a abissal fragilidade". Campo aberto, permanente mesa redonda de diálogo perene, eis a grande lição dessa memorável revista!
Dedicado à memória de Luís Moita, bom amigo.
Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian