O som que faz quando se parte
No último meio século, o ano em que Portugal teve a maior taxa de natalidade foi 1976. As revoluções são românticas e a nossa revolução, marcada por um imenso movimento popular que disputou a construção de uma sociedade democrática, foi-o certamente. No meio da turbulência do tempo e da incerteza política do PREC, o país entusiasmou-se. A liberdade chegou como esperança no futuro e os portugueses desataram a fazer bebés.
Hoje, vivemos uma situação que nada tem de semelhante. Na última década, a natalidade exibiu níveis historicamente baixos e em 2013 e 2014, amordaçado pela crise e pela troika, Portugal teve a menor taxa bruta de natalidade de toda a Zona Euro.
Certamente que uma comparação entre estes tempos é sempre difícil - muito mudou no mundo nas últimas décadas, com transformações sociais e culturais que alteraram modelos familiares e os desejos das famílias quanto ao número de filhos. Mas o que sabemos é que as famílias portuguesas adiam cada vez mais a decisão de ter o primeiro filho. Mais: os inquéritos à fecundidade mostram com uma clareza cristalina que, em Portugal, homens e mulheres têm muito menos filhos do que gostariam, por entenderem que não têm a estabilidade laboral ou a capacidade financeira para o poder fazer.
A quebra na natalidade não é uma crise em si mesma. Há outros mecanismos para nutrir o mercado de trabalho ou para assegurar a sustentabilidade da Segurança Social, como a imigração ou novas formas de financiamento público das pensões. A crise da natalidade é outra coisa. É um sintoma de uma crise mais larvar e mais profunda que paira sobre o futuro da sociedade portuguesa no momento em que a democracia celebra 50 anos.
Há hoje um estreitamento das possibilidades de futuro dos mais jovens por comparação com o passado. Há uma quebra do contrato social entre gerações que, curiosamente, nada tem de confronto de valores ou de identidades como aconteceu nos Anos 60/70.
A rutura geracional de hoje não é cultural, é económica. É a descrença das gerações que hoje têm 20, 30 ou até mesmo 40 anos de que possam repetir o percurso dos seus pais: ter um emprego estável, arranjar casa, ter filhos e melhorar o nível de vida. E é uma rutura percebida por todos - pais e filhos percebem que a possibilidade das gerações mais jovens virem a ter uma vida decente no país é bem mais escassa do que no passado.
É certo que esta não é uma excecionalidade portuguesa. A precarização do mercado de trabalho e a compressão dos salários tem sido a política reinante na União Europeia nos últimos 25 anos. Em 2014, um terço dos estudantes universitários alemães indicava que desejava trabalhar no setor público. Não por terem uma especial vocação para o serviço público, mas antes por entenderem que o Estado é o único empregador que pode assegurar um emprego estável, e, por isso, uma perspetiva de autonomia, estabilidade e progressão.
O sociólogo Oliver Nachtwey diz que hoje, e ao contrário do pós-guerra, vivemos em sociedades de mobilidade social descendente, o resultado de uma política incrustada na Europa que implica que os mais jovens vão viver pior do que os seus pais. Os cuidados de saúde são hoje melhores, a educação é mais abrangente e qualificante, o acesso à cultura não tem comparação. Ou seja, a parte da provisão de serviços públicos pelo Estado melhorou. É no mercado de trabalho que acontece a queda. A expectativa de ter um emprego que garanta estabilidade e um salário decente para andar com a vida para a frente deixou de ser credível.
Por cá, é tudo um pouco pior. Porque os salários continuam entre os mais baixos da Europa, a precarização do trabalho é ainda mais profunda e incapacitante, mas os preços da habitação, pelo contrário, se aproximaram das grandes capitais europeias. É uma mistura explosiva. Traduz-se na emigração dos mais jovens, na perpetuação de muitos em casa dos pais, ou nos trintões que vivem em apartamentos partilhados quando já queriam constituir família.
Os liberais de vários partidos venderam, e ainda vendem, este modelo como virtude: viva o trabalho “flexível”, os “empreendedores” a recibo verde cujo rendimento não chega ao fim do mês, e a alegria de vender paulatinamente o parque habitacional a fundos e estrangeiros ricos. Outros foram mais sóbrios, mas nada fizeram para o travar. Quem avisou para o buraco geracional que se estava a escavar estava certo - os custos da precarização do trabalho e da habitação estão hoje à vista.
Neste contexto, apesar de ter criado um Ministério da Juventude, as políticas do novo Governo da AD resumem-se a um fingimento de solução. As medidas do IRS Jovem nada fazem por mais de metade dos jovens que ganha menos de mil e poucos euros. A isenção de IMT na compra de casa é inútil para a grande maioria dos que têm menos de 40 anos que não podem sequer sonhar com casa própria, porque são precários e os preços estão muito “acima das suas possibilidades”.
A atual crise da democracia é uma crise de futuro. É uma quebra da solidariedade na comunidade política - os mais velhos não cuidaram de assegurar oportunidades de uma vida decente para os que vieram depois. Essa quebra tem-se feito lenta, mas continuamente, pelo silêncio que fica nas famílias depois da partida dos jovens, ou pelo ruído metálico da ligação Zoom em que os avós veem os netos que já mal falam português. Mais à frente, receio que essa quebra se oiça com estrondo. É o som que faz quando se parte a esperança no futuro.